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"A BESTA NA LUA"
Montagem com direção de Maria Thaís fica em cartaz no teatro do Sesc Belenzinho até amanhã
Memória armênia é recuperada em peça
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
"Era e não era": essa é a
questão de "A Besta na
Lua". A expressão, recorrente na
peça, se refere ao genocídio armênio pelo governo turco em 1915, o
que espalhou pelo mundo órfãos
que buscaram refazer a vida sem
opção a não ser sofrer em silêncio
as pedras e setas do destino.
Para romper o silêncio, sem cair
no melodrama que tiraria a dignidade dessa dor, o armênio norte-americano Richard Kalinoski
constrói uma narrativa em flashback: Vincent, um ex-menino de
rua, já idoso, conta a história do
casal de sobreviventes Aram e Seta Tomasian, até o momento em
que o adotam, isto é, até que a memória estrangeira se torne a sua
própria história.
Esse recurso à narrativa épica tira qualquer maniqueísmo da trama, desnudando o absurdo universal da intolerância. "Com o
que se parece um turco?", pergunta Vincent à sua futura mãe. "Um
turco se parece com um armênio", diz ela. Se todos os homens
são iguais, o outro, enquanto terrível besta que devora a lua, não
existe.
Mas a metáfora que costura a
trama é outra: a da identidade
preservada no álbum de fotos familiar. Aram se estabelece enquanto fotógrafo, tendo como
única lembrança de sua família
degolada uma foto -da qual
Aram recorta as cabeças na esperança de completar as lacunas
com sua própria futura família.
Maria Thaís evita com grande
sensibilidade qualquer excesso:
não cede a um naturalismo catártico, por marcas simbólicas sem
maneirismo estético.
Com essa clareza de propostas,
mesmo as fragilidades de interpretação acabam sendo aproveitadas. Ricardo Napoleão tem uma
entonação às vezes estereotipada,
mas isso compõe bem o patético
de Aram, que imita, com suas
lembranças de menino, a imagem
paterna. Beatriz Sayad, que tem
uma linda voz para o canto, fala
com um timbre adolescente que
faz de Seta uma Annie Frank que
sobreviveu e tenta agora conciliar
seu ímpeto libertário com a felicidade possível. Thomás Jorge conta com a simpatia da platéia por
atores tão jovens, mas é mais maduro que o tom estereotipado de
criança que Walter Breda, seu alter ego narrador, lhe empresta.
Só mesmo tamanha delicadeza
é capaz de conter tanta dor. "Era e
não era": viver, e talvez sonhar,
depois de uma tragédia é como ter
que continuar respirando com as
costelas quebradas -"respirar já
é uma aventura", descobre Vincent. Sem conceder ao sentimentalismo, "A Besta na Lua" tira o
fôlego da platéia e é inesquecível.
A Besta na Lua
Direção: Maria Thaís
Com: Walter Breda, Beatriz Sayad
Onde: Sesc Belenzinho (av. Álvaro
Ramos, 915, tel. 6605-8143). Sáb.: 21h.
Dom.: 20h. Até domingo
Quanto: de R$ 5 a R$ 15
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