São Paulo, sábado, 21 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"A BESTA NA LUA"

Montagem com direção de Maria Thaís fica em cartaz no teatro do Sesc Belenzinho até amanhã

Memória armênia é recuperada em peça

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Era e não era": essa é a questão de "A Besta na Lua". A expressão, recorrente na peça, se refere ao genocídio armênio pelo governo turco em 1915, o que espalhou pelo mundo órfãos que buscaram refazer a vida sem opção a não ser sofrer em silêncio as pedras e setas do destino.
Para romper o silêncio, sem cair no melodrama que tiraria a dignidade dessa dor, o armênio norte-americano Richard Kalinoski constrói uma narrativa em flashback: Vincent, um ex-menino de rua, já idoso, conta a história do casal de sobreviventes Aram e Seta Tomasian, até o momento em que o adotam, isto é, até que a memória estrangeira se torne a sua própria história.
Esse recurso à narrativa épica tira qualquer maniqueísmo da trama, desnudando o absurdo universal da intolerância. "Com o que se parece um turco?", pergunta Vincent à sua futura mãe. "Um turco se parece com um armênio", diz ela. Se todos os homens são iguais, o outro, enquanto terrível besta que devora a lua, não existe.
Mas a metáfora que costura a trama é outra: a da identidade preservada no álbum de fotos familiar. Aram se estabelece enquanto fotógrafo, tendo como única lembrança de sua família degolada uma foto -da qual Aram recorta as cabeças na esperança de completar as lacunas com sua própria futura família.
Maria Thaís evita com grande sensibilidade qualquer excesso: não cede a um naturalismo catártico, por marcas simbólicas sem maneirismo estético.
Com essa clareza de propostas, mesmo as fragilidades de interpretação acabam sendo aproveitadas. Ricardo Napoleão tem uma entonação às vezes estereotipada, mas isso compõe bem o patético de Aram, que imita, com suas lembranças de menino, a imagem paterna. Beatriz Sayad, que tem uma linda voz para o canto, fala com um timbre adolescente que faz de Seta uma Annie Frank que sobreviveu e tenta agora conciliar seu ímpeto libertário com a felicidade possível. Thomás Jorge conta com a simpatia da platéia por atores tão jovens, mas é mais maduro que o tom estereotipado de criança que Walter Breda, seu alter ego narrador, lhe empresta.
Só mesmo tamanha delicadeza é capaz de conter tanta dor. "Era e não era": viver, e talvez sonhar, depois de uma tragédia é como ter que continuar respirando com as costelas quebradas -"respirar já é uma aventura", descobre Vincent. Sem conceder ao sentimentalismo, "A Besta na Lua" tira o fôlego da platéia e é inesquecível.


A Besta na Lua
    
Direção: Maria Thaís
Com: Walter Breda, Beatriz Sayad
Onde: Sesc Belenzinho (av. Álvaro Ramos, 915, tel. 6605-8143). Sáb.: 21h. Dom.: 20h. Até domingo
Quanto: de R$ 5 a R$ 15



Texto Anterior: Música: Buddy Guy toca "para humanos" em SP
Próximo Texto: Cinema: Bertrand Blier homenageia inseguros
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.