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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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"O teatro favorece tudo o que é visto como fragilidade"

DA REPORTAGEM LOCAL

A relação da loucura com o teatro é muito cara ao filósofo Peter Pál Pelbart, 47. Nascido na Hungria e vivendo no Brasil desde criança, ele trabalhou por 20 anos como terapeuta em hospital público, no qual um dia ouviu de um paciente a sugestão de criar um grupo de teatro.
Foi aí que nasceu a cia. Ueinzz (1996) formada basicamente por usuários de serviço de saúde mental de SP, ligados ao hospital-dia A Casa até o ano passado, agora "autônomos" (há também terapeutas, atores profissionais, músicos etc.). São três espetáculos na trajetória da cia. "Ueinzz - Viagem à Babel" (1996), "Dedalus" (1998) e "Gotham SP" (2000).
A seguir, trechos da entrevista de Pelbart, coordenador da Ueinzz, que atua no fio tênue entre "vidas precárias" e "práticas estéticas", em parceria com os encenadores Sérgio Penna e Renato Cohen. (VS)
 

ARTISTA E DESEQUILÍBRIOS - "O problema é uma certa idealização da loucura, uma perspectiva romântica que às vezes pode pesar. Nos ensaios que acompanho na cia., há um misto de irreverência com um estado bruto das associações livres. Isso cria um certo caos na criação. Não saberia dizer sob o ponto de vista do criador, mas há atores profissionais que vêm para a Ueinzz e ficam espantados com o estado de prontidão dos atores, a entrega e disponibilidade para o improviso. De algum modo, não estão nem aí para o que se espera deles".

DESCONSTRUÇÃO - "Bom, eu não entendo nada de teoria teatral, mas vou fazer aqui uma incursão selvagem. É uma hipótese. Há um viés contemporâneo da pesquisa teatral que vai na linha de uma desconstrução da narrativa, de pôr em xeque a própria representação, de tentar trabalhar outros tipos de presença e buscar um caráter mais fragmentário, sem pensar em termos de fluxo. Os atores da Ueinzz, por exemplo, têm isso dado, uma certa desconstrução da linguagem e até da gestualidade. A unidade de ação vai para o brejo. Isso propicia uma espécie de confluência em que a loucura traz, fisicamente, o que o teatro contemporâneo busca. É um encontro a ser pensado".

LUGAR CÊNICO - "Com a experiência que acompanho na cia., não tenho dúvida de que o teatro é um dispositivo que ao mesmo tempo protege e favorece tudo aquilo que comumente é visto apenas como precariedade, déficit ou fragilidade e acaba ganhando certo esplendor pela ritualização. No teatro da Ueinzz, cada um pode vir com sua bagagem, trejeitos, dissociações, e tudo isso será válido e ganhará um lugar cênico, será legitimado pela riqueza".

ESPECTADOR - "Os psicanalistas falam em "inconsciente à flor da pele, a céu aberto". Não sei se é a melhor expressão, mas há algum estado cru, brusco, não mediado pelos nossos amortecedores psíquicos. Já vi muita gente saindo emocionada das apresentações dizendo que sentiu que a vida estava do lado de lá do palco, e não do lado de cá. Não sei se os nossos clichês midiáticos, artísticos ou subjetivos já estão tão esvaziados que um tipo de vida em cena, com uma certa crueza e quase crueldade, contribui para essa capacidade de afetação".



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