São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 2010

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Crítica/ "Só Dez por Cento é Mentira"

Documentário mergulha na poesia de Manoel de Barros

Diretor Pedro Cezar faz filme lúdico, que brinca com os sentidos da linguagem e com noções de verdade e invenção

Divulgação
Poeta mato-grossense Manoel de Barros fala de seus "inutensílios" em longa-metragem

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

A poesia do mato-grossense Manoel de Barros, como se sabe, alça ao primeiro plano as coisas miúdas e desimportantes do mundo, tanto as produzidas pela natureza (insetos, lagartixas, caramujos) como as descartadas pelo homem: objetos sem uso, roupas velhas, aparelhos quebrados.
A graça dessa poética, para quem consegue enxergá-la, está na tentativa de recriar um olhar infantil (ou excêntrico) que desloca o sentido desses "inutensílios".
Mais que isso: de forçar os limites da sintaxe para suscitar um estado de estranhamento que, à maneira dos koans zen-budistas, teria o efeito de revelação ou iluminação.
Ao retratar Manoel de Barros, o documentário "Só Dez por Cento É Mentira", de Pedro Cezar, empreende laboriosamente uma imersão em seu universo poético.
Mais do que meramente dar a palavra ao nonagenário poeta e a seus admiradores de diversas áreas (atores, cineastas, escritores, artistas plásticos), o diretor buscou uma sintonia com o procedimento estético e ético de Manoel de Barros. O que equivale a dizer que fez um filme lúdico, que brinca com os sentidos da linguagem (verbal, visual) e com as noções de verdade e invenção.
Conduzido pela locução, em tom coloquial, do próprio Pedro Cezar (realizador também do encantador "Fabio Fabuloso", sobre o surfista Fabio Gouveia), o documentário perscruta o ambiente em que Manoel de Barros trabalha, o cenário pantaneiro em que se formou e os personagens que povoam seu imaginário.
Algumas ideias são inspiradas, como a de apresentar um artesão (na verdade um ator fazendo o papel) que fabrica numa oficina, com sucata, os "inutensílios" inventados pelo poeta, como o "esticador de horizontes" ou o "abridor de amanhecer". Vêm à mente os aparelhos absurdos de Marcel Duchamp (1887-1968).
Mais sutil é a sequência em que vemos pneus saídos da fábrica, depois seu uso prático nas rodas dos carros e, por fim, suas câmaras de ar utilizadas como boias por meninos num lago de cachoeira. Perfeita tradução cinematográfica da ideia de transfiguração poética das coisas do mundo.
A fotografia, puxando para os tons terrosos, de ocre ou ferrugem, contribui decisivamente para a atmosfera de "fundo de quintal" do filme, enquanto a música, misturando viola com tabla e harmônio indiano, faz a ponte entre o Pantanal e o Oriente.
Avaliação: ótimo



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