São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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Professor de literatura lança obra em que revive a língua esquisita de um cronista paulistano dos anos 10
Bananére é recuperato por un professoiri

Divulgação
São Paulo de Juó Bananére


MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

"Sô redattore! Diga p'ro "Piralho" che non brinca maise cummigo sinó prego as món n'elli. Che si pensa aóra tuttos di xamá a genti di inguento literario!"
Entendeu? Pois foi assim que, em 1912, Juó Bananére, cronista da revista "O Pirralho", expôs seu descontentamento ao ser chamado de "expoente da intelectualidade paulista".
"Inguento literário é a vó!", escreveu Juó Bananére (uma mutação de "João Bananeira"), uma das personalidades mais populares de São Paulo dos anos 10, pseudônimo do estudante de engenharia Alexandre Marcondes Machado, não um descendente de italiano, mas um paulista nascido em Pindamonhangaba, em 1882.
Cem das 300 crônicas e sátiras do "poeta, barbiére e giurnalista", que inventou uma língua própria, resultado de suas andanças pelo Bom Retiro, foram reunidas pelo professor de literatura brasileira Benedito Antunes, da Unesp. "Juó Bananére: As Cartas d'Abax'o Pigues", foi recém-lançado pela Editora Unesp.
O língua esquisita também foi para o cinema: "São Paulo de Juó Bananére", do diretor Cláudio Sena, participou do festival de documentários "É Tudo Verdade", realizado na cidade em abril.
No começo do século, São Paulo era a ressonância do caos linguístico, resultado da horda de imigrantes que desembarcavam para "fazer o Brasil". Italianos, alemães, japoneses, turcos e libaneses se acotovelavam por entre as ruas estreitas do centro e do subúrbio e se entendiam sabe lá como.
Era também tempo das revistas ilustradas com abordagem literária, como "Kosmos", "A Vida Moderna", "Fon-Fon" e "Careta", um prenúncio do modernismo. Destacava-se a combatividade irônica de "O Pirralho", fundada por Oswald de Andrade.
O cronista Juó Bananére que, entre 1911 e 1917, escreveu num português ítalo-paulista macarrônico a coluna "As Cartas d'Abax'o Pigues" (lê-se baixo piques, um antigo bairro de São Paulo), apresentava-se como um "gandidato à Gademia Baolista de Letras".
Ele substituiu Annibale Scipione, pseudônimo de Oswald de Andrade, autor das primeiras colunas, num tempo de experiências radicais no plano linguístico e político; tempo das manifestações anarquistas.
O poeta Décio Pignatari aponta semelhanças entre o personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, e o personagem Semanigno Santo, de Bananére, criado anos antes, em sua coluna.
O cronista de "O Pirralho", morreu em 1933.
"Ele sempre teve uma legião de admiradores. Muita gente quer estudá-lo agora. Mal acabei o livro e a editora já sugeriu um segundo volume", conta Antunes, que pesquisa o pré-modernismo e o modernismo na Unesp de Assis. Leia trechos da entrevista que Antunes deu à Folha, por e-mail.
Folha - Na mistura de sotaques da São Paulo, por que Juó Bananére se destacou?
Benedito Antunes -
Num ambiente em que se ouviam vários sotaques, Bananére destaca-se pelo seu trabalho com a linguagem. Ele criou um estilo inconfundível. A mistura deturpada do italiano e do português cria um verdadeiro gênero macarrônico, no qual todas as misturas são permitidas.
Folha - Ele teve imitadores?
Antunes -
O próprio Oswald de Andrade, que iniciara a brincadeira escrevendo "As Cartas d'Abax'o Pigues" em "O Pirralho", não consegue atingir a fluência e a graça do estilo de Bananére.
Folha - Ele estava em sintonia com os movimentos sociais da época, como o anarquismo?
Antunes -
O fato de escrever em "O Pirralho" obriga-o a um constante diálogo com as questões do momento. Seus textos abordam a crônica jornalística, os fatos políticos. Seu radical humorismo muitas vezes desagradava aos homens da revista, como se verifica no episódio da visita de Olavo Bilac a São Paulo. Enquanto "O Pirralho" torna-se porta-voz de sua campanha nacionalista, Bananére diverte-se com uma deliciosa paródia do discurso do poeta.
Folha - Você destaca mais as crônicas ou a ficção de Bananére?
Antunes -
Minha ênfase nas cartas se deve a sua regularidade e a sua consistência para configurar um universo ficcional. Ele não só cria verdadeiras personagens de ficção como transforma figuras reais e personalidades históricas em personagens.
Folha - Qual o valor de sua literatura de ficção?
Antunes -
Estou convencido de que se trata de boa literatura, situada talvez um pouco à margem dos gêneros consagrados. O próprio Bananére provavelmente não tinha muita consciência disso, embora fosse o único, ainda que em chave paródica, a considerar seu trabalho como literário.
Folha - Você "fecha" com Otto Maria Carpeaux, ou considera, como Paulo Paes, Bananére uma "grosseria"?
Antunes -
Carpeaux situa o autor macarrônico na melhor tradição literária, ao lado de Teofilo Folengo e Joyce, enquanto criador de uma língua nova. Exagero? Parece-me que não. Carpeaux, depois do ensaio pioneiro de 1949, volta ao tema pelo menos mais duas vezes, sempre associando o macarrônico à questão social ("uma voz, talvez a primeira, da democracia paulista"), na medida em que solapava a linguagem e os valores culturais da classe dominante. Como admirador do poeta e ensaísta José Paulo Paes, acredito que ele provavelmente não teve oportunidade de refletir mais detidamente sobre o fenômeno Bananére. Talvez se o tivesse feito, no mínimo apreciaria a independência de seu estilo.
Folha - Até que ponto essa São Paulo multirracial inspirou o movimento modernista?
Antunes -
A configuração cultural de São Paulo é motivo recorrente na obra de Mário de Andrade, de Oswald, de Alcântara Machado, de Tarsila do Amaral e de muitos outros artistas representativos. E Bananére fez do macarrônico uma expressão importante da incorporação do imigrante.
Folha - Já se vêem traços desse movimento em "O Pirralho"?
Antunes -
Do ponto de vista do padrão literário vigente na época, "O Pirralho" era conservador. Chegava a ser mesmo acadêmico, dando pouca importância a autores como Lima Barreto. Cultivava um gosto literário muito diferente daquilo que seria proposto pelos modernistas. A maior novidade do periódico não se localizava nas colunas literárias, mas sim nas seções cômicas, na brincadeira com o hibridismo linguístico, de que Bananére é, sem dúvida, o maior representante. Aí sim, a linguagem é livre de amarras de qualquer espécie. Graças ao macarrônico, Bananére podia colocar em prática, por exemplo, a ortografia simplificada, questão não-resolvida no próprio "O Pirralho", adepto que era da ortografia pseudo-etimológica em voga. Além disso, o que me parece mais importante é que a linguagem macarrônica permitia um olhar descompromissado e, portanto, crítico em relação às diversas temáticas abordadas. Depois que Bananére responde ao inquérito literário que "O Pirralho" promovia em suas páginas, entrevistando escritores de renome, parece que ninguém mais se sente à vontade para falar seriamente de um assunto com o qual Bananére tinha simplesmente "disgungliambado". Diante da pergunta referente à influência da Academia Paulista de Letras sobre a literatura paulista, não deixa por menos: "Uh! Porca miseria! Una influenza indisgraziata, pur causa che faiz una divisó intro os pissoalo chi non sabe lê ni scrivê, cioé, os anarfabeto i o pissoale chi sabe lê i scrivê, cioé, os arfabeto. Na Gademia só entra os anarfabeto".
Folha - Comparando com Joyce, era um momento de experimentar a língua?
Antunes -
Provavelmente. O clima de época podia favorecer essa experimentação. É preciso lembrar, porém, que isso só passa a ocorrer em larga escala no Brasil na década de 20, com Oswald de Andrade, que deve ter se beneficiado de sua experiência como diretor de "O Pirralho". No caso de Bananére, conta muito mais a condição particular vivida por São Paulo.

Livro: Juó Bananére: As Cartas d'Abax'o Pigues
Autor: Benedito Antunes
Lançamento: Unesp
Quanto: R$ 38 (424 págs.)


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