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Língua de Bananére ainda é real
PASQUALE CIPRO NETO
colunista da Folha
"Vamo tudu djunto o Gurudjá."
Quantas e quantas vezes ouvi isso
na infância. Para um filho de italianos, como eu, a língua de Juó Bananére não é miragem, nem delírio. É mais do que real. E talvez
enigmática para quem não tem o
pé nessa cozinha.
O macarrônico -nome que o
professor Benedito Antunes dá a
essa língua- é o incrível cruzamento das sintaxes italiana (com
forte presença do dialeto de Nápoles) e portuguesa e a adaptação das
terminações portuguesas às italianas e vice-versa.
Assim, uma frase que em português seria "Troquei as velas do carro" e em italiano "Ho cambiato le
candele della macchina" em macarrônico vira "Ho cambiato le vele del carro". A frase é real e foi dita
por Gerardo Ardore, um dos tantos amigos italianos de meu pai.
Em italiano, o plural não é feito
com o acréscimo de "s", e sim com
a troca da vogal. O singular em "a",
como o de "candela" (vela), passa a
"e" no plural (candele). A mágica
do macarrônico está em transformar "velas" em "vele": raiz portuguesa e terminação italiana.
A palavra italiana "carro" não
significa o nosso carro, automóvel,
e sim carroça, vagão. Associada a
outra palavra, pode indicar idéia
de veículo de serviço (carro atrezzi
= guincho; carro armato = tanque
de guerra).
Moral da história: "Ho cambiato
le vele del carro" se torna intraduzível para quem não cresceu ouvindo essa língua híbrida.
Estrangeiro em casa
O poeta chileno Pablo Neruda
dizia que quem finca raiz em dois
lugares sofre duas vezes. Pura e dura verdade. Que o digam muitos
dos italianos que para cá vieram e
um dia acabam voltando à Itália.
Lá não se fala macarrônico! Esse
italiano acaba sendo quase estrangeiro em sua própria terra.
Insaciável em sua ação aglutinadora, o macarrônico não poupa
ninguém, nem o professor Benedito Antunes, que a certa altura (pág.
118) traduz "roba" por "coisa, roupa". "Roba", em italiano, não é
roupa. É quase o mesmo que o mineiro "trem": "Che roba é?".
O macarrônico açambarcou até
meu pai, para quem era ponto de
honra resistir a essa língua. Falava
o italiano e o dialeto de Nápoles,
sem misturá-los entre si e ao português, mas, no fim da vida, certamente cansado da batalha inexorável, rendeu-se. Vez ou outra, soltava -para nosso delírio (meu e de
meus irmãos)- algo como "Hai
fatto molte aule oggi?". "Aule" é
plural de "aula". Mas "aula" não é
aula, é sala pública, em que se faz
uma audiência, uma conferência,
uma aula. Aulas é "lezioni".
Os 101 textos de Bananére
"Eu foi", "Eu pôs", "dgente runha", "San Gaetano", "Nó mi vá a
pegá una gripe", "Vamo a vê", "anticamente", "u portó" (que vira
"portôn", quando o discurso é feito basicamente em português) são
muitas das formas tipicamente
macarrônicas, presentes no cotidiano linguístico retratado por Bananére.
No mais, é ler e deliciar-se com o
ótimo trabalho do professor Antunes e equipe. A longa parte introdutória do livro -criteriosa, séria- é essencial para a leitura dos
101 textos de Bananére.
Como diz minha mãe, "parabendza".
Em tempo: um médico uruguaio
me disse que um escritor de seu
país tem ótimo trabalho sobre o
portunhol da fronteira Brasil-Uruguai. Que tal, professor Antunes?
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