São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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Língua de Bananére ainda é real

PASQUALE CIPRO NETO
colunista da Folha

"Vamo tudu djunto o Gurudjá." Quantas e quantas vezes ouvi isso na infância. Para um filho de italianos, como eu, a língua de Juó Bananére não é miragem, nem delírio. É mais do que real. E talvez enigmática para quem não tem o pé nessa cozinha.
O macarrônico -nome que o professor Benedito Antunes dá a essa língua- é o incrível cruzamento das sintaxes italiana (com forte presença do dialeto de Nápoles) e portuguesa e a adaptação das terminações portuguesas às italianas e vice-versa.
Assim, uma frase que em português seria "Troquei as velas do carro" e em italiano "Ho cambiato le candele della macchina" em macarrônico vira "Ho cambiato le vele del carro". A frase é real e foi dita por Gerardo Ardore, um dos tantos amigos italianos de meu pai.
Em italiano, o plural não é feito com o acréscimo de "s", e sim com a troca da vogal. O singular em "a", como o de "candela" (vela), passa a "e" no plural (candele). A mágica do macarrônico está em transformar "velas" em "vele": raiz portuguesa e terminação italiana.
A palavra italiana "carro" não significa o nosso carro, automóvel, e sim carroça, vagão. Associada a outra palavra, pode indicar idéia de veículo de serviço (carro atrezzi = guincho; carro armato = tanque de guerra).
Moral da história: "Ho cambiato le vele del carro" se torna intraduzível para quem não cresceu ouvindo essa língua híbrida.

Estrangeiro em casa
O poeta chileno Pablo Neruda dizia que quem finca raiz em dois lugares sofre duas vezes. Pura e dura verdade. Que o digam muitos dos italianos que para cá vieram e um dia acabam voltando à Itália. Lá não se fala macarrônico! Esse italiano acaba sendo quase estrangeiro em sua própria terra.
Insaciável em sua ação aglutinadora, o macarrônico não poupa ninguém, nem o professor Benedito Antunes, que a certa altura (pág. 118) traduz "roba" por "coisa, roupa". "Roba", em italiano, não é roupa. É quase o mesmo que o mineiro "trem": "Che roba é?".
O macarrônico açambarcou até meu pai, para quem era ponto de honra resistir a essa língua. Falava o italiano e o dialeto de Nápoles, sem misturá-los entre si e ao português, mas, no fim da vida, certamente cansado da batalha inexorável, rendeu-se. Vez ou outra, soltava -para nosso delírio (meu e de meus irmãos)- algo como "Hai fatto molte aule oggi?". "Aule" é plural de "aula". Mas "aula" não é aula, é sala pública, em que se faz uma audiência, uma conferência, uma aula. Aulas é "lezioni".


Os 101 textos de Bananére
"Eu foi", "Eu pôs", "dgente runha", "San Gaetano", "Nó mi vá a pegá una gripe", "Vamo a vê", "anticamente", "u portó" (que vira "portôn", quando o discurso é feito basicamente em português) são muitas das formas tipicamente macarrônicas, presentes no cotidiano linguístico retratado por Bananére.
No mais, é ler e deliciar-se com o ótimo trabalho do professor Antunes e equipe. A longa parte introdutória do livro -criteriosa, séria- é essencial para a leitura dos 101 textos de Bananére.
Como diz minha mãe, "parabendza".
Em tempo: um médico uruguaio me disse que um escritor de seu país tem ótimo trabalho sobre o portunhol da fronteira Brasil-Uruguai. Que tal, professor Antunes?


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