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São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 2003

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DANÇA/CRÍTICA

Espetáculo de Márcia Haydée e Ismael Ivo aborda as turbulências de um casal e suas mortes simbólicas

Do humor à tragédia de Tristão e Isolda

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Dois grandes nomes da dança, reunidos para inventar algo diferente: a dupla Ismael Ivo e Márcia Haydée estreou sábado passado sua reinterpretação de "Tristão e Isolda". Marcado pelas intensidades da música de Wagner (1813-83), o espetáculo de dança-teatro está tão longe da lenda medieval quanto do romantismo alemão ao abordar as turbulências de um casal e suas várias mortes simbólicas. Ao mesmo tempo, reencena questões ancestrais.
O espetáculo começa fora do palco, com o casal discutindo. A cena é minimalista, geometricamente desenhada: pela luz, pelos objetos (mesa, cama) e pelo próprio limite do cenário (painel branco ao fundo). Solto na imensidão do espaço, vê-se o cálice com o fluido de amor. A coreografia é de Ivo e Haydée, dirigidos por Marco Aurelio, que reforça oposições entre os intérpretes. Estilos e gêneros variam, do humor à tragédia, da situação mais prosaica à sugestão mais poética.
Quase tudo se passa em silêncio, no largo tempo da dramaturgia. A música de Wagner -várias versões da "Morte de Amor" (cena final da ópera "Tristão e Isolda")- marca os encontros do casal, com violência e prazer, ternura e desgosto. Os momentos mais fortes da noite são esses quadros de imobilidade aparente, de intenção tão tensa e densa. Exemplo: o casal de quatro, contraposto ao vermelho no fundo. Como esfinges, uma de frente para a outra, seus rostos quase se tocando.
Há um risco na mistura de linguagens, que nem sempre parece chegar ao que se propõe. Uma caminhada empostada de Haydée, ao modo clássico, não rompe o que é natural na cena? E os gestos dos dois, por vezes, não estão colocados? Será que o significado interno não se perde na estilização? Em outros momentos, pequenos gestos repetidos bastam para dizer os não-ditos que marcam uma relação de amor.
Com o tempo, o espetáculo cresce, o que é sempre bom sinal. Se a paradoxal união de estilos pode neutralizar as cargas, talvez também possa dinamizar modelos estabelecidos. Até que ponto a história de Tristão e Isolda está sendo alegoricamente vivida nas abstrações da dança não parece ser a preocupação principal de ninguém, mas nem por isso a pergunta deixa de ser relevante. Entre a potência de sentido e a vontade de representação, esse Tristão e essa Isolda vivem mais uma vez sua morte, para aquecer, mais uma vez, nossa vida.


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