São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

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TEATRO

"Avalanche", do dramaturgo David Rabe, é montada pela primeira vez no Brasil, com direção de Ivan Sugahara

Espetáculo desmascara a hipocrisia da fama

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Há poucos anos atrás, atores da Companhia de Ópera Seca, então no auge da vanguarda, se felicitavam por ter escapado ao beco sem saída do realismo, que os teria prendido em um sofá, segurando um copo de uísque.
O fato de vários deles, além do diretor Ivan Sugahara, que foi assistente de Gerald Thomas, estarem justamente hoje em torno do sofá de "Avalanche", imersos em uísque, cocaína e verborragia, não representa um retorno prudente ao convencional. Muito pelo contrário: há uma grande maturidade em dominar uma linguagem para destruí-la por dentro. O desafio é tão grande que esta é a primeira vez que se monta um texto de David Rabe no Brasil.
Alinhavo voluntário de clichês, em "Avalanche" Rabe faz com o sitcom o que Almodóvar faz com o melodrama: simula suas fórmulas para expor a solidão e vazio de sentido do cotidiano atual. Mais conhecido aqui como roteirista, Rabe se apóia em um diálogo vertiginoso e em uma narrativa em tema e variações em torno do arrivismo e da falsidade dos que deveriam ser formadores de opinião, mas que se comprazem no medíocre e no simulacro.
Frágeis e vazios como cascas de ovo depois do frigir, os personagens se entredevoram não para obter o poder, mas por sentir que o poder que obtiveram é mesquinho e indevido. Não por acaso, o título original, "Hurlyburly", cita as bruxas de Macbeth: "When the hurlyburly is done/ When the battle's lost and won".
Eddie (um patético e carismático Bruce Gomlevsky) é um diretor de elenco de Hollywood que divide escritório e apartamento com o Mickey (Marcos Azevedo, que simula cinicamente um galã). Tendo que dividir com ele também a mulher que ama (Ludmila Rosa, de sensualidade ácida e classuda), se afunda em cocaína e se distrai brincando com a ambição do ator medíocre Phil (Marcio Vito, que mergulha na rusticidade que o papel exige). Artie, o roteirista (Cláudio Handrey, de calculada ironia), traz de presente para os dois Donna (Bianca Comparato, que enche o palco com seu frescor), adolescente perdida no mundo, enquanto Eddie oferece a Phil Bonnie, a prostituta pau-para-toda-a-obra.
Machistas, odiosos, seguimos a trajetória ao longo dos meses destes que no fundo não estão mais em busca da fama e da auto-realização, mas à espreita de um momento de sinceridade, que validaria a vida. Não raro recorrem a uma enciclopédia como se fosse novas tábuas de Moisés, mas Deus teima em sua ausência.
E o tempo se esvai em pequenos gestos, chaves de carro jogadas na mesa, carreiras cheiradas, programação da TV. Quando acaba a peça, já parecem estranhamente familiares, como amigos incômodos. É o mérito da direção de Sugahara, que alinhava marcas e diálogos sem chamar a atenção, permitindo aos atores a difícil conquista da espontaneidade.
Não é por incapacidade, muito pelo contrário, que os atores de "Avalanche" incomodam quem insiste em fazer marketing do arrivismo da fama. Parecem perguntar: isto é gente?


Avalanche
    
Texto: David Rabe
Direção: Ivan Sugahara
Com: Julia Carrera, Marcio Vito e outros
Onde: Sesc Belezinho (av. Álvaro Ramos, 915, tel. 6602-3700)
Quando: sáb. e dom., às 18h
Quanto: R$ 7,50 a R$ 15



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