São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

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CRÍTICA

Coreógrafo relaciona literatura e dança

Borelli provoca com duplos, tensão e peso

Divulgação
Cena do espetáculo "Metamorfoses", baseado em Kafka


INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Movimentos espásticos, quebrados, densos, sequenciais: é disso que se faz a metamorfose corporal do Grupo FAR-15. Inspirado livremente na novela "A Metamorfose", de Franz Kafka (1883-1924), o coreógrafo Sandro Borelli cria duplos e duplos de duplos, num universo próprio, muito tenso e pesado. O espetáculo teve estréia sexta passada na torrinha das Oficinas Oswald de Andrade -espaço alternativo que não poderia ser mais apropriado, com sua sugestão de outras torres e porões kafkianos.
Borelli cria relações entre teatro, literatura e dança, articuladas por tremendas cargas emocionais. Dois registros organizam a coreografia: de um lado a opacidade, o não-dito, que é também o visceral, ressaltado na sobreposição de corpos que se transformam um no outro, ou no choque entre dois ou mais corpos; de outro, cenas limpas, caminhadas circulares, luz indicando caminhos, movimentos sequenciais repetidos e ecoados pelos sete bailarinos.
Muitos elementos do texto de Kafka estão presentes, simbólica ou explicitamente. Mas não é da alusão direta que o espetáculo tira força, e sim da construção meticulosa da cena, quer dizer, das metamorfoses da própria dança.
Aqui, como em outros espetáculos da companhia, o repertório de movimentos ecoa, muitas vezes, os gestos de Marcos Abranches, um bailarino com dificuldades motoras. Seus movimentos espasmódicos são fracionados, ou explodidos por dentro, ganhando novas dinâmicas e acentos. O resultado pode ser extraordinário; mas também cria riscos para quem, como Borelli, resiste a qualquer forma de sentimentalismo.
O fato é que a busca da expressão, em alguns momentos, arrisca se perder na própria dramaticidade -como na cena em que Abranches alimenta-se de modo voluntária e involuntariamente descontrolado. Ou na alegoria da baba, que finaliza o espetáculo.
Uma reserva análoga pode ser feita à trilha sonora, que se deixa povoar por convencionalismos eletrônicos, num plano que nem sempre parece estar à altura das violências e dilaceramentos da dança. Já a luz cria um jogo de tensões de outra ordem, que se instaura na própria instabilidade e ajuda muito na construção dos sentidos.
Tudo somado, o espetáculo causa espanto e provocação, que são duas virtudes. Nesses abismos soturnos do homem diante do mundo, na "luta acirrada para buscar uma verdade trágica e dilacerante", Borelli e o FAR-15 acham, mais uma vez, a via de entrada para uma dança que faz diferença, onde às vezes não parece mais haver diferença.

Metamorfoses



   
Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade (r. Três Rios, 363, Bom Retiro, tel. 221-4704)
Quando: até 8/12. Sex. e sáb., às 21h; dom., às 20h
Quanto: grátis



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