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TEATRO
Espetáculo sobre visita de Carlos Gardel a Caracas em 1935 estréia no galpão do grupo, no bairro de Santa Cecília
Folias d'Arte encena indignação de Cabrujas
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Um cachorro com as costelas de
fora. Não ladra, mas é feroz em
sua miséria. A caravana passa, indiferente, fingindo que não é com
ela. A exclusão é intangível, como
a um fantasma.
A imagem está na boca de um
personagem comunista em "El
Día que me Quieras", do venezuelano José Ignacio Cabrujas (1937-95), montagem do Folias d'Arte
("Otelo") que estréia hoje no galpão do grupo, em Santa Cecília.
Cabrujas concebe a visita do
cantor Carlos Gardel a Caracas,
em 1935, onde se apresentaria para o ditador da vez, cruza o evento
com os ventos revolucionários da
extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (Stálin substitui Lênin) e desemboca tudo,
sempre com bom humor, na sala
de uma tradicional família venezuelana, os Ancízar.
O resultado é uma reflexão sobre o sonho e seus mitos, alegoria
de heróis e covardes, à moda de
um dramaturgo que lembra Vianinha ("Rasga Coração"), mas é
pouco conhecido entre nós.
Título emprestado da canção de
Gardel e Alfredo Le Pera, espectros também levados à cena, a peça faz referências ao clássico "As
Três Irmãs", de Tchecov.
Elvira Ancízar (Bete Dorgan)
está pasma com a irmã mais nova,
María Luiza (Simoni Boer), que
quer vender a casa e se mudar
com o noivo comunista, Pio Miranda (Reinaldo Maia), para a
Ucrânia, nas estepes soviéticas.
Miranda busca contraponto ao
ramerrame familiar. Válvula de
utopia, ele diz que conhece o escritor francês Romain Rolland,
um idealista; defende a "visão global" do camarada Stálin. O discurso agüenta até o porvir esbarrar numa profética palavra: a
mentira, demasiada teatral.
"Ele não consegue entender como há pessoas que não se incomodam com o cachorro de costelas de fora. Hoje, no Brasil, aqueles que ainda se indignam são tratados por "dinossauros", "viúvas
do socialismo", como se a indignação com a miséria humana fosse só uma opção ideológica", diz
Maia, dramaturgo que, coincidentemente, volta a atuar 20 anos
após a montagem de outro texto
de Cabrujas, "Ato Cultural".
"Não vivemos época de ruptura, mas de acomodação", diz o diretor Marco Antonio Rodrigues.
Na encenação, a conhecida verve musical do Folias (de "Cantos
Peregrinos", por exemplo) reveza
com a farsa que avança em dois
atos, num espaço cênico dominado pelo branco. As portas do galpão são abertas ao fundo da cena,
arejando realidade.
"Não somos tangueiros na essência, somos mais samba, xaxado, baião. A dança está mais para
gafieira. Importa o espírito marginal do tango, não-europeizado,
do início da carreira de Gardel",
diz o ator e diretor musical Dagoberto Feliz, no papel do próprio.
É uma peça de perspectiva humanista, diz Dorgan. "Não se trata de perda das utopias, mas de
como a mídia e os retratos social,
econômico e cultural da América
Latina nos afastam delas e nos impingem outros valores."
EL DÍA QUE ME QUIERAS. Com: Bruno
Perillo, Demian Pinto, Flávio Tolezani,
Patrícia Barros, Simoni Boer, Val Pires,
Imyra Santana, Bira Nogueira e outros.
Onde: Galpão do Folias (r. Ana Cintra,
213, Santa Cecília, tel. 3361-2223).
Quando: estréia hoje, para convidados;
qui. a sáb., às 21h; dom., às 20h; até 31/7.
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