São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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UM BRASILEIRO NO PÁREO

Diretor de fotografia carioca colabora desde 95 com Pedro Almodóvar

Affonso Beato fala de "Tudo..."

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Se "Orfeu", de Cacá Diegues, não conseguiu se tornar o representante tupiniquim deste ano na "corrida" de maior audiência do globo, hoje à noite na entrega do Oscar outro nome brasileiro vai ecoar no pensamento de profissionais de cinema e do público mais familiarizado com as técnicas da sétima arte.
O carioca Affonso Beato, 58, diretor de fotografia adotado pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar como titular nas câmeras de suas últimas três produções, concorre, ainda que indiretamente, com "Tudo sobre Minha Mãe", favorito na disputa para melhor filme estrangeiro.
"Embora pequeno se comparado às dez maiores bilheterias americanas da semana, o filme é um tremendo sucesso nos EUA e acaba de triplicar o número de salas de exibição. Tem enormes chances e, se vencer na Academia de Cinema, ocupará espaço ainda maior", lembrou Beato em entrevista à Folha por telefone de Los Angeles, cidade que é seu quartel-general nos EUA desde que se instalou no país, há 30 anos.
Elogiado expressamente por críticos de jornais norte-americanos por seu trabalho em "Tudo sobre Minha Mãe", Beato é responsável, em grande medida, pela linguagem visual à flor da pele dos últimos três filmes de Almodóvar.
Entre outros elementos, o brasileiro influi sobre enquadramentos, iluminação, tonalidade das cores na película e efeitos de transição de cenas. "Pedro abandonou uma característica de artificialismo presente até "Kika" (93), que não estava funcionando mais. Acho que o ajudei na conquista de certo naturalismo e emocionalidade bastante presentes no cinema norte-americano", diz Beato.
O sucesso obtido desde então e o perfeito entendimento da psicologia dos roteiros do espanhol reforçam a perspectiva de continuidade da parceria, a ser retomada ainda este ano em produção rodada nos EUA.
Com formação inicial em artes plásticas e especializações em engenharia eletrônica, Beato acumula a direção de fotografia de 37 longas-metragens (21 norte-americanos), 60 curtas e cerca de 300 filmes de propaganda. Entre seus primeiros títulos, está o clássico de Glauber Rocha "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (68), prêmio do júri no Festival de Cannes. Esse, aliás, foi o filme que motivou o primeiro convite de Almodóvar, conforme conta Beato na entrevista a seguir, realizada na última sexta-feira.

Folha - Você está acompanhando Pedro Almodóvar na campanha americana para ganhar o Oscar?
Affonso Beato -
Sim, mas estou em um clima de trabalho intenso, acordando de madrugada e indo para locações com o diretor Terry Zwigoff (autor do premiado documentário "Crumb", de 84, sobre o cartunista Robert Crumb) em seu primeiro longa de ficção, "Ghost World", produzido pela empresa de John Malkovich, com a MGM e a inglesa Granada. Os três primeiros dias são de "afinação" intensa, é o pior momento.

Folha - De que trata "Ghost World"?
Beato -
É um filme para adultos, uma comédia sobre a "upcoming age", ou seja, sobre duas adolescentes escolares metidas a superiores. Também é uma crítica ao mundo corporativista sem personalidade norte-americano. O elenco tem Thora Birch (a filha do casal central em "Beleza Americana") e também Steve Buscemi ("Pulp Fiction"), um tremendo ator.

Folha - Atores dão muito trabalho às câmeras?
Beato -
As personalidades e métodos de trabalho dos atores são muito diversificados. Coloco-me sobretudo a serviço do diretor e do roteiro, mas respeito demais o trabalho dos atores, talvez o mais difícil de todos, pois eles têm de viver um personagem na frente de uma parafernália tecnológica e 300 pessoas olhando.
Nunca fui atingido por estrelismos. Mas atualmente atores têm tremendo poder e alguns, como Julia Roberts, Sandra Bullock e o próprio Malkovich estão transformando esse poder em potencial de produção. Já "A Fera do Rock", de Jim McBride, que fotografei, foi produzido por seu astro, Dennis Quaid.

Folha - Você tem uma relação especial com o diretor Jim McBride.
Beato-
Sim, fotografei para ele 13 longas e me orgulho muito dessa quase exclusividade. Ele é como um irmão desde 74, mas recentemente houve um impasse, pois ele me chamou e eu já estava contratado por Zwigoff.

Folha - Que tal representar por tabela o Brasil nesta edição do Oscar?
Beato -
Claro que me orgulho disso e é bom para minha carreira. Não tenho compromissos com popularidade, porém nunca tive tantos convites de trabalho e roteiros oferecidos. As pessoas adoram "Tudo Sobre Minha Mãe" e o meu trabalho nele.
Também tenho sido muito cumprimentado aqui por "Orfeu", embora o filme tenha parecido muito radical às poucas pessoas que o viram. Elas queriam a atmosfera do original ("Orfeu do Carnaval", 59) e não esperavam um videoclipe expressionista, com visão política. Porém, todos esses filmes brasileiros indicados nos últimos anos -com Waltinho (Walter Salles Jr.), Fernanda Montenegro- deram muito prestígio ao cinema brasileiro aqui.

Folha - E com Almodóvar, ele dá liberdade de criação?
Beato -
Ele conhece cinema demais e sabe tudo o que quer. Vem com tudo montado na cabeça, como Hitchcock, mas seu currículo tem 13 filmes e o meu tem três vezes mais. Assim, ele procura pegar o melhor que tenho para oferecer.
Sugeri, por exemplo, que filmasse os atores mais frontalmente, para a emoção passar melhor. Isso funcionou. As composições são mais precisas agora, e há um relacionamento mais direto dos atores com a câmera.
Para mim, o trabalho mais forte graficamente, o mais objetivo dos três que fizemos juntos, é "Carne Trêmula". Mas, com "Minha Mãe" -que é simétrico a ponto de ser barroco-, veio o sucesso maior, e ninguém pode adivinhar as razões, é imprevisível.

Folha - Almodóvar tem gostado de estar nos EUA?
Beato -
Ele teve um convite para desenvolver aqui um roteiro chamado "The Paper Boy", baseado em romance de Peter Dexter, ambientado no início do século em Miami. Mas teve de largar para promover "Minha Mãe" nos EUA, pois também é o produtor. Um Oscar pode lhe dar força para exigir coisas para a nova produção americana.

Folha - Almodóvar tem fama de artesão perfeccionista. Isso gerou algum atrito?
Beato -
Ao contrário, pois antes das filmagens sempre vamos ao ambiente de locações, lemos o roteiro e planejamos tudo. Terminamos em nove semanas, em vez das dez geralmente programadas.

Folha - Quem tem definido as cores densas e contrastantes dos últimos filmes dele?
Beato -
Eu sou meio fauvista (referência à exacerbação de cores puras e agressivas em movimento de pintura no início do século). Tento não levar meu estilo para todas as produções, mas isso sempre passa.

Folha - É possível comparar Almodóvar e Glauber Rocha?
Beato -
Acho-os muito parecidos, e não apenas fisicamente. Ambos são obcecados por cinema, extremamente informados, com uma voracidade de leitura impressionante e grande inteligência. Os olhos esbugalhados e os cabelos enlouquecidos de Almodóvar, muito parecidos aos de Glauber, às vezes me assustam. Ele adora Glauber, e "Dragão" é uma referência para ele.

Folha - Você recebeu o prêmio do MinC no Hotel Quitandinha, para a fotografia de "Orfeu". Há outros projetos por aqui?
Beato -
Foi emocionante o troféu, pois me orgulho do filme e do nome do prêmio, que é José Medeiros, um grande artista e amigo meu. Acho que "Orfeu" atingiu o povo brasileiro. O próximo projeto aí, ainda com Cacá Diegues, é "Deus é Brasileiro", adaptação do romance "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro.


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