|
Próximo Texto | Índice
TEATRO - CRÍTICAS
"Deus lhe Pague" revive Procópio como clown
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
Décio de Almeida Prado relata
com alguma crueldade uma turnê
que Procópio Ferreira fez com
"Deus lhe Pague", conservando
tão-somente as cenas dos dois
mendigos. O grande ator estaria no
fim, vencido afinal.
Pode ser, pois foram algumas das
últimas apresentações de "Deus
lhe Pague" com Procópio. Mas
também é certo que o melhor de
"Deus lhe Pague", o texto de Joracy
Camargo, está precisamente na
dupla de clowns -do mendigo filósofo, o papel de Procópio, e seu
colega e discípulo.
Não chegam a ser diálogos brilhantes, sobretudo quando tratam
por filosofia o que não vai além de
ingênuo proselitismo. Mas também há passagens de pura representação popular -até com rasgos do modernismo que tanto se
quer negar ao dramaturgo, que vinha da experiência do Teatro de
Brinquedo, e ao ator, que inspirou
"O Rei da Vela", de Oswald de Andrade.
Escorrendo ironia e materialismo, o diálogo dos dois mendigos
chega a esboçar um niilismo absurdo, por exemplo: "Não passa
ninguém por aqui...". "Em compensação a vida passa..." É possível
ver traços dos clowns de "Godot",
dos coveiros de "Hamlet", do Gordo e o Magro, na linhagem atemporal da comédia.
É o que se pode ver na remontagem que a filha de Procópio, Bibi
Ferreira, produziu para lembrar o
centenário do inconteste maior
ator brasileiro -apesar das décadas de esforços críticos e históricos
de Almeida Prado.
Em relação ao cotidiano do teatro nacional, trata-se de uma superprodução. Os cenários e figurinos se acumulam perdulariamente
na encenação "de época", datada
de 1932, ano de estréia da peça. Recebem especial atenção as cenas do
mendigo enquanto milionário e,
em "flashback", quando jovem.
Mas é possível apreciar o melhor
de "Deus lhe Pague" na interpretação de Bemvindo Sequeira, o ator
que, depois de incontáveis nomes
buscados em novelas da Globo, ficou unicamente por seu talento
cômico com o papel que foi de Procópio.
Nas cenas do mendigo nas ruas,
ele vai distribuindo com tempo
perfeito as inúmeras "boutades", a
saraivada de frases feitas e chistes
que levaram "Deus lhe Pague" a
ser considerada a peça de chegada
do teatro de tese ao país.
Um pouco oprimidos pelos cenários monumentais de igrejas, os
dois mendigos permeiam toda a
apresentação, sendo sempre um
alívio vê-los em cena, sozinhos, como se a peça voltasse ao que lhe é
natural, até mesmo original. Como
se o restante, aquilo que o próprio
Procópio cortou na citada turnê,
não fosse mais que enxerto.
Não que as demais cenas -praticamente duas outras peças diferentes- não tenham seu interesse.
Mas elas se inscrevem, de um lado, na comédia de costumes então
dominante, com sua jovem esposa
que se casou por dinheiro, seu jovem de família tradicional que faliu, seu velho milionário que manipula os outros dois. Enfim, o triângulo amoroso de alta classe em que
ninguém é lá muito respeitável.
De outro lado, na cena em "flashback", o que se vê é um melodrama
socialista sobre um jovem operário
cuja invenção, um tear revolucionário, é furtada por seu patrão, que
ainda o faz ser condenado com
uma falsa acusação.
No triângulo amoroso, Adriane
Galisteu estréia no palco com inusitada segurança. Sustenta longas
falas, até passagens sozinha em cena, projeta voz e se mostra à vontade no humor de duplos sentidos
-em que tudo parece auto-referência. Mas no mais das vezes o
que faz mesmo é desfilar vestidos
lindamente.
Humberto Martins, que faz o jovem falido, tem bons momentos
cômicos como um "escada" -carregado de expressões de bestificação- do milionário de Bemvindo
Sequeira.
Mas o que importa, não tem jeito, são os dois mendigos, a "filosofia" do velho, os ataques incessantes à miséria e à (falta de) Justiça, a
iconoclastia; sobretudo as tiradas,
as respostas cortantes. É possível
compreender então como, com
Procópio, "Deus lhe Pague" chegou perto das 4.000 apresentações.
Avaliação:
Peça: Deus lhe Pague
Autor: Joracy Camargo
Supervisão: Bibi Ferreira
Direção: Paulo Afonso de Lima
Com: Bemvindo Sequeira, Luis Amorim,
Adriane Galisteu e outros
Quando: qui. a sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa,
153, tel. 288-0136)
Quanto: R$ 15 (quinta), R$ 20 (sexta e
domingo) e R$ 25 (sábado)
Próximo Texto: Sexo se une a melodrama Índice
|