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"FALSTAFF"
Elenco de grandes cantores é o ponto alto de nova montagem da ópera de Verdi encenada por José Possi Neto
O último dos inocentes, sem inocência
Patricia Santos/Folha Imagem
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O barítono norte-americano Frederick Burchinal e a soprano Eiko Senda estão no "Falstaff", que tem sua última apresentação hoje |
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Na saída, um septuagenário
comovido só conseguia repetir "que beleza, que beleza". Já
um rapaz de 20 anos usou linguagem bem mais eloquente, mas
impublicável num jornal de família. Que os dois pudessem estar
tão emocionados é prova, acima
de tudo, do gênio de Verdi (1813-1901), mas serve de emblema dessa nova montagem de "Falstaff" no Municipal, que merecia ficar
em cartaz muito mais tempo.
Verdi é o último dos inocentes,
o último dos "naifs", para usar a
distinção romântica entre arte espontânea e "sentimental" (autoconsciente, irônica). Mas a inocência é uma na tragédia e bem
outra na comédia. Em "Falstaff"
(1893), o compositor já deixou vida e morte para trás, e escreve
com o teatro do mundo a seus
pés.
Nunca, como aqui, sua música é
tão livre. A mais moderna de suas
óperas vai acompanhando a cena
gesto a gesto, longe do padrão de
recitativo-e-ária. Para a platéia,
soa difícil, comparada às seduções de "Rigoletto" ou "La Traviata". Mas a platéia... ri. Riu muito
no domingo, riu com gosto, e ovacionou os cantores no fim.
Era uma retribuição mínima
para as artes do barítono americano Frederick Burchinal, no papel-título, e do verdadeiro escrete de
estrelas nacionais: Fernando Portari, Manuel Alvarez, Mauro
Wrona; Eiko Senda, Rosana Lamosa, Luciana Bueno, Regina Elena Mesquita; mais Sérgio Weintraub e Sávio Sperandio. O mundo é um palco, e o palco está virando um mundo incrível de vozes por aqui.
Os cenários (de Jean-Pierre Tortil) e os figurinos (de Fábio Namatame) transferem a ação para
uma vaga Inglaterra de fins de século 19 -Inglaterra que deve algo
ao cinema de Peter Greenaway.
De modo análogo, a encenação de
José Possi Neto foge quase sempre do registro caricato, "de ópera". Que coisa: os cantores estão
virando atores.
Só a cena de Falstaff imundo e
humilhado, no início do ato três,
ou vestido de Caçador Negro
(com a galharia na cabeça) no
grande noturno da floresta, já valeriam a ópera. Mas foi tanta coisa
mais: o quarteto brejeiro das damas, o dueto de amor (Lamosa segurando um lá bemol absoluto,
por quatro lindos longos compassos e meio), Eiko Senda cantando
Alice com schwarzkopfiano controle erótico-musical, Luciana
Bueno encarnando uma Meg fatal
debaixo do espetacular figurino
verde, Regina Elena e Burchinal se
divertindo do início ao fim.
Detalhes: os guarda-chuvas
brancos ao fundo, na espetacular
hilariante cena do ato dois, antecipando o momento em que Falstaff será jogado janela abaixo, junto com a roupa suja. Antes disso:
Falstaff de capa, agachado, transformado em banquinho. As escadarias em espiral, a cadeira e os
biombos com olhos, sugerindo o
mundo de "Alice no País das Maravilhas". O "Falstaff" de Verdi e
Boito é uma criação própria, bem
diferente do de Shakespeare; com
liberdade análoga, este "Falstaff"
de Tortil e Possi ganha camadas
novas de graça e de farsa.
"Tudo no mundo é burla", incluindo a harpa. Aquilo não era
harpa nem na China nem nos
bosques de Windsor: era um descarado teclado. Será que a orquestra vai dar tanto para trás tão rápido? No mais, Ira Levin regeu com
ânimo, empregando a fluência
para cobrir o que precisava.
Nem isso incomoda demais,
quando se vê aqueles cristais gigantescos caindo do céu contra a
floresta no pano de fundo, e o palco se enchendo cada vez mais de
vozes, até o apoteótico "tutti gabbati!". Dá uma coisa na garganta.
A gente afinal murmura "que beleza!", "que carvalho!" e sai para a
rua mais moço e mais velho do
que nunca.
Falstaff
Com: Orquestra Sinfônica Municipal
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de
Azevedo, s/nš, tel. 222-8698)
Quando: hoje, às 20h30
Quanto: de R$ 15 a R$ 100
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