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São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 2003

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"FALSTAFF"

Elenco de grandes cantores é o ponto alto de nova montagem da ópera de Verdi encenada por José Possi Neto

O último dos inocentes, sem inocência

Patricia Santos/Folha Imagem
O barítono norte-americano Frederick Burchinal e a soprano Eiko Senda estão no "Falstaff", que tem sua última apresentação hoje


ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Na saída, um septuagenário comovido só conseguia repetir "que beleza, que beleza". Já um rapaz de 20 anos usou linguagem bem mais eloquente, mas impublicável num jornal de família. Que os dois pudessem estar tão emocionados é prova, acima de tudo, do gênio de Verdi (1813-1901), mas serve de emblema dessa nova montagem de "Falstaff" no Municipal, que merecia ficar em cartaz muito mais tempo.
Verdi é o último dos inocentes, o último dos "naifs", para usar a distinção romântica entre arte espontânea e "sentimental" (autoconsciente, irônica). Mas a inocência é uma na tragédia e bem outra na comédia. Em "Falstaff" (1893), o compositor já deixou vida e morte para trás, e escreve com o teatro do mundo a seus pés.
Nunca, como aqui, sua música é tão livre. A mais moderna de suas óperas vai acompanhando a cena gesto a gesto, longe do padrão de recitativo-e-ária. Para a platéia, soa difícil, comparada às seduções de "Rigoletto" ou "La Traviata". Mas a platéia... ri. Riu muito no domingo, riu com gosto, e ovacionou os cantores no fim.
Era uma retribuição mínima para as artes do barítono americano Frederick Burchinal, no papel-título, e do verdadeiro escrete de estrelas nacionais: Fernando Portari, Manuel Alvarez, Mauro Wrona; Eiko Senda, Rosana Lamosa, Luciana Bueno, Regina Elena Mesquita; mais Sérgio Weintraub e Sávio Sperandio. O mundo é um palco, e o palco está virando um mundo incrível de vozes por aqui.
Os cenários (de Jean-Pierre Tortil) e os figurinos (de Fábio Namatame) transferem a ação para uma vaga Inglaterra de fins de século 19 -Inglaterra que deve algo ao cinema de Peter Greenaway. De modo análogo, a encenação de José Possi Neto foge quase sempre do registro caricato, "de ópera". Que coisa: os cantores estão virando atores.
Só a cena de Falstaff imundo e humilhado, no início do ato três, ou vestido de Caçador Negro (com a galharia na cabeça) no grande noturno da floresta, já valeriam a ópera. Mas foi tanta coisa mais: o quarteto brejeiro das damas, o dueto de amor (Lamosa segurando um lá bemol absoluto, por quatro lindos longos compassos e meio), Eiko Senda cantando Alice com schwarzkopfiano controle erótico-musical, Luciana Bueno encarnando uma Meg fatal debaixo do espetacular figurino verde, Regina Elena e Burchinal se divertindo do início ao fim.
Detalhes: os guarda-chuvas brancos ao fundo, na espetacular hilariante cena do ato dois, antecipando o momento em que Falstaff será jogado janela abaixo, junto com a roupa suja. Antes disso: Falstaff de capa, agachado, transformado em banquinho. As escadarias em espiral, a cadeira e os biombos com olhos, sugerindo o mundo de "Alice no País das Maravilhas". O "Falstaff" de Verdi e Boito é uma criação própria, bem diferente do de Shakespeare; com liberdade análoga, este "Falstaff" de Tortil e Possi ganha camadas novas de graça e de farsa.
"Tudo no mundo é burla", incluindo a harpa. Aquilo não era harpa nem na China nem nos bosques de Windsor: era um descarado teclado. Será que a orquestra vai dar tanto para trás tão rápido? No mais, Ira Levin regeu com ânimo, empregando a fluência para cobrir o que precisava.
Nem isso incomoda demais, quando se vê aqueles cristais gigantescos caindo do céu contra a floresta no pano de fundo, e o palco se enchendo cada vez mais de vozes, até o apoteótico "tutti gabbati!". Dá uma coisa na garganta. A gente afinal murmura "que beleza!", "que carvalho!" e sai para a rua mais moço e mais velho do que nunca.


Falstaff   
Com: Orquestra Sinfônica Municipal
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, tel. 222-8698)
Quando: hoje, às 20h30
Quanto: de R$ 15 a R$ 100



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