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São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 2003

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ORQUESTRA DE FILADÉLFIA

Grande à sua maneira

DO ARTICULISTA DA FOLHA

Más orquestras são todas semelhantes; cada grande orquestra é grande à sua maneira. A Orquestra de Filadélfia, por exemplo, que tocou sábado na Sala São Paulo: grandiosidade, neste caso, não rima (como é habitual) com monumentalidade, suntuosidade ou opulência. Seria melhor procurar uma palavra menor e mais simples para essa orquestra elétrica e coesa.
Quem regeu foi o maestro russo Yakov Kreizberg. Visto sem som, pareceria um regente de desenho animado, alguém fazendo uma imitação de Charles Chaplin fazendo uma imitação de regente. Comentário inevitável, mas injusto para quem faz uma orquestra dessas tocar com tamanho brilho.
Depois de algum tempo, a gente acostuma e acaba até gostando dos maneirismos. Kreizberg rege tudo de memória, com empatia e sabedoria, e tem momentos de real inspiração. Exemplo: a passagem para o primeiro grande tema lírico da "Sinfonia nš 4" de Schumann (1810-56), uma de tantas onde ele fez a música desacelerar delicadamente até chegar num outro tempo, uma narrativa dentro de outra. (Na "Dança Húngara" de Brahms, no bis, isso chegava ao paroxismo, com efeito quase desbragado.)
Exemplo 2: os violoncelos trazidos à tona na repetição do "trio", no "Scherzo". A melodia geralmente fica escondida, fazendo contraponto à principal; aqui ganhou novos privilégios. Mais um exemplo? O "crescendo" das violas, saindo de dentro do dos fagotes e contrabaixos, no início da "Patética" de Tchaikovsky (1840-93). Detalhes assim são a própria vida da música e definem a imaginação de quem toca.
Schumann era o compositor favorito do escritor Roland Barthes (1915-80), que escreveu mais de uma vez sobre ele no contexto de seus comentários sobre o desejo e a paixão amorosa. Nada soa mais barthesiano, hoje, do que as suspensões não resolvidas na música de Schumann. Tanto maior seu impacto quando tocadas com tanta leveza e juventude.
Lideradas pelo "spalla" David Kim, as cordas da orquestra são um alento para quem não tem mais grandes ilusões neste setor. E os segundos violinos são o máximo.
Existem as grandes e grandiloquentes orquestras, as grandiosas e opulentas, as suntuosas, as mirabolantes. A Filadélfia é fulminante, sem pompa.
A engenharia funciona como se fosse natural; o som é brilhante, mas com acentos de outono, como o reflexo das árvores nas águas do rio Schuylkill.
Comparada à Filarmônica de Nova York, esta é uma orquestra menos sofisticada. Comparada à Concertgebouw, menos metafísica. À Viena, menos vivida e sedutora. Etc. etc. Mas cada grande orquestra é grande à sua maneira e a Filadélfia hoje está fazendo música como ninguém. (ARTHUR NESTROVSKI)


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