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CINEMA
"Amores" é ensaio sobre a cegueira amorosa
ELVIS CESAR BONASSA
especial para a Folha
O filme "Amores", de Domingos
de Oliveira e Priscilla Rozenbaum,
extrai toda sua força poética do solo do mito. Está às voltas, sim, com
o mito em estado puro, não para
desmenti-lo mais uma vez, mas
para fazer uma constatação surpreendente: no mundo atual, o que
parece ingenuidade, ou crença romântica, possui um forte conteúdo
de verdade.
O enredo, com três casos de desencontros e reencontros sentimentais, é mítico porque aborda a
oposição fundamental entre destino e vontade, como os heróis antigos, que desafiavam o destino ditado pelo Olimpo para tentar afirmar sua própria autonomia. E como nos casos heróicos, os personagens do filme correm o risco de sucumbir à força magnética de um
destino que mais se aproxima
quanto mais se tenta evitá-lo. As
confusas relações humanas apresentadas no filme lutam para se
desmanchar -pois o desmanche é
a senha da vida contemporânea-
apenas para abraçar o "final feliz",
que patética e inconscientemente
os personagens tentavam esconjurar.
Assim, o filme mostra o burocrata do governo, casado e infeliz, tentando desesperadamente ter um filho para salvar seu casamento. O
casal mal consegue transar, não há
mais tesão em nenhum dos dois.
Ambos vivem a situação infeliz, e
cheia de acusações e culpas, como
um "mau destino". Não lhes ocorre parar, rever a vida em comum,
mudar hábitos e recuperar afetos:
a infelicidade, a exemplo do amor,
produz cegueira. E contra esse destino buscam a afirmação de uma
vontade própria, que não é apenas
transformadora, mas destrutiva
do momento presente. Os personagens de "Amores" se rebelam,
criam situações que tornam inevitáveis os rompimentos e partem.
Por isso, esse burocrata começa a
ter um caso com a filha, jovem, de
um velho amigo, acaba engravidando-a e rompe seu casamento.
Por vontade própria, cria a situação que explode o
casamento e sua vida anterior. Parte
para outra, foge da
infelicidade que,
"por destino", lhe
cabia.
Cegado pela nova
paixão, não vê que
a moça o seduz porque é a negação de
sua vida tola, burocrática, sem ousadia, sem coragem
de transformação.
Cegado pela antiga
infelicidade, não vê
que a mudança de
vida gerada pela
nova (e, como se
verá na seqüência
do filme, fugaz)
paixão criaria as
condições para
reencontrar a felicidade no casamento. A cena do rompimento do casal, o
choro na escada, as
recordações de última hora, mostram
que ainda se amam,
mas a situação criada impossibilita
que continuem
juntos. Quando poderiam ser felizes,
afinal, porque a vida real está mudando, separam-se.
É assim que, uma
primeira vez, a força mítica se apresenta: o pequeno
herói cotidiano foge da infelicidade
buscando outras
infelicidades, continuamente, embora julgue estar afirmando a si mesmo, sua autonomia e sua felicidade. Foge do destino e leva o destino
junto com ele.
É possível mostrar como a mulher também realiza percurso semelhante: joga todas as suas fichas,
ela também, no filho que não chegará, deprime-se, sofre, sem buscar, a exemplo do marido, nenhuma atitude transformadora da
própria vida em comum.
Ela mesma estimula a aproximação inicial entre o marido e a jovem, insistindo para que ele a receba para uma entrevista. Não sabia
o que estava fazendo, mas fazia.
Após o rompimento, ela se reaproxima de um amor de adolescência,
promessa de felicidade nunca
cumprida, e também engravida
afinal. Filho tido, amor perdido:
ela não quer ficar com o antigo
amor, fica sozinha.
Os diretores têm a imensa delicadeza de não filmar esses novos casos e novos rompimentos. Numa
solução surpreendente, fazem os
personagens narrarem, como numa entrevista, acompanhada por
alguns "flashes", o que lhes aconteceu no tempo da separação. Pois o
importante aqui é a narrativa.
Ao contar sua própria história,
segunda irrupção mítica do filme
-pois "mythos" é também narrativa-, os personagens recobram a
visão, parcial, do passado. O mito
narrado é absorvido, afinal, como
experiência própria, pessoal, índice de reconhecimento das possibilidades de felicidade que havia antes de todos os rompimentos.
Antes rebelados contra o destino
que atazanava o presente, sossegam com o destino que moldou o
agora passado. Mas continuam cegos, ainda, ao não perceber que o
apaziguamento não se deu pela
força desse suposto destino, mas
pelas ações que empreenderam,
sem saber bem o que faziam, e que
mudaram as condições reais, práticas, de suas vidas.
É essa mudança de vida que permite então os retornos e as retomadas dos antigos amores e projetos:
o final já pode ser feliz. O sofrimento, vivido como má sina, não
mudou os amores que havia, mudou as vidas de quem amava e tornou os amores possíveis. A verdade guardada no mito, que "Amores" busca revelar, é que a crença
aparentemente ingênua no amor
tem um poder de transformação
que se rebela contra a estupidez da
vida atual. A infelicidade, aqui, não
é fruto de amores falhados, os
amores falham porque a vida é infeliz (ou danificada, para usar uma
expressão do filósofo alemão
Theodor Adorno).
Mas resta sempre a cegueira. Os
personagens precisam sofrer para
encontrar essa verdade. Por não
enxergarem os danos que a sociedade lhes impinge, danificam uma
das poucas possibilidades de se rebelar contra uma tristeza e uma
dor que vão além de suas individualidades: danificam a possibilidade de amar. Na impotência da
cegueira, destroem (-se) em vez de
mudar. Se isso acarreta as mudanças que podem recuperar a possibilidade de felicidade, é sempre
por meio do mítico sofrimento.
Isso faz de "Amores" um filme
-num sentido bem especial-
quase panfletário, a favor da persistência das relações amorosas, a
favor do amálgama entre razão e
paixão. Ele retoma o sentido de algumas passagens escritas nos anos
40 por Adorno, em sua "Minima
Moralia": "Se o amor deve representar na sociedade uma sociedade
melhor, ele não é capaz de fazê-lo
como um enclave pacífico, mas tão
somente numa resistência consciente. Amar significa não deixar a
imediatidade atrofiar-se por força
da onipresente pressão da mediação, da economia. Só ama quem
tem força para persistir no amor".
("Minima Moralia", editora Ática,
1992, p. 151)
É curioso ver o filósofo tão esquerdista e o filme tão moderno
converterem-se, afinal, numa defesa do amor persistente e da confiança no casamento. Mas isso talvez faça sentido para aqueles que,
de algum modo, já ficaram cegos
(ou ainda estão) e já sofreram (ou
ainda sofrem) por amor.
Elvis Cesar Bonassa é doutorando em filosofia
na USP
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