São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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CINEMA
"Amores" é ensaio sobre a cegueira amorosa

ELVIS CESAR BONASSA
especial para a Folha

O filme "Amores", de Domingos de Oliveira e Priscilla Rozenbaum, extrai toda sua força poética do solo do mito. Está às voltas, sim, com o mito em estado puro, não para desmenti-lo mais uma vez, mas para fazer uma constatação surpreendente: no mundo atual, o que parece ingenuidade, ou crença romântica, possui um forte conteúdo de verdade.
O enredo, com três casos de desencontros e reencontros sentimentais, é mítico porque aborda a oposição fundamental entre destino e vontade, como os heróis antigos, que desafiavam o destino ditado pelo Olimpo para tentar afirmar sua própria autonomia. E como nos casos heróicos, os personagens do filme correm o risco de sucumbir à força magnética de um destino que mais se aproxima quanto mais se tenta evitá-lo. As confusas relações humanas apresentadas no filme lutam para se desmanchar -pois o desmanche é a senha da vida contemporânea- apenas para abraçar o "final feliz", que patética e inconscientemente os personagens tentavam esconjurar.
Assim, o filme mostra o burocrata do governo, casado e infeliz, tentando desesperadamente ter um filho para salvar seu casamento. O casal mal consegue transar, não há mais tesão em nenhum dos dois. Ambos vivem a situação infeliz, e cheia de acusações e culpas, como um "mau destino". Não lhes ocorre parar, rever a vida em comum, mudar hábitos e recuperar afetos: a infelicidade, a exemplo do amor, produz cegueira. E contra esse destino buscam a afirmação de uma vontade própria, que não é apenas transformadora, mas destrutiva do momento presente. Os personagens de "Amores" se rebelam, criam situações que tornam inevitáveis os rompimentos e partem.
Por isso, esse burocrata começa a ter um caso com a filha, jovem, de um velho amigo, acaba engravidando-a e rompe seu casamento. Por vontade própria, cria a situação que explode o casamento e sua vida anterior. Parte para outra, foge da infelicidade que, "por destino", lhe cabia.
Cegado pela nova paixão, não vê que a moça o seduz porque é a negação de sua vida tola, burocrática, sem ousadia, sem coragem de transformação. Cegado pela antiga infelicidade, não vê que a mudança de vida gerada pela nova (e, como se verá na seqüência do filme, fugaz) paixão criaria as condições para reencontrar a felicidade no casamento. A cena do rompimento do casal, o choro na escada, as recordações de última hora, mostram que ainda se amam, mas a situação criada impossibilita que continuem juntos. Quando poderiam ser felizes, afinal, porque a vida real está mudando, separam-se.
É assim que, uma primeira vez, a força mítica se apresenta: o pequeno herói cotidiano foge da infelicidade buscando outras infelicidades, continuamente, embora julgue estar afirmando a si mesmo, sua autonomia e sua felicidade. Foge do destino e leva o destino junto com ele.
É possível mostrar como a mulher também realiza percurso semelhante: joga todas as suas fichas, ela também, no filho que não chegará, deprime-se, sofre, sem buscar, a exemplo do marido, nenhuma atitude transformadora da própria vida em comum.
Ela mesma estimula a aproximação inicial entre o marido e a jovem, insistindo para que ele a receba para uma entrevista. Não sabia o que estava fazendo, mas fazia. Após o rompimento, ela se reaproxima de um amor de adolescência, promessa de felicidade nunca cumprida, e também engravida afinal. Filho tido, amor perdido: ela não quer ficar com o antigo amor, fica sozinha.
Os diretores têm a imensa delicadeza de não filmar esses novos casos e novos rompimentos. Numa solução surpreendente, fazem os personagens narrarem, como numa entrevista, acompanhada por alguns "flashes", o que lhes aconteceu no tempo da separação. Pois o importante aqui é a narrativa.
Ao contar sua própria história, segunda irrupção mítica do filme -pois "mythos" é também narrativa-, os personagens recobram a visão, parcial, do passado. O mito narrado é absorvido, afinal, como experiência própria, pessoal, índice de reconhecimento das possibilidades de felicidade que havia antes de todos os rompimentos.
Antes rebelados contra o destino que atazanava o presente, sossegam com o destino que moldou o agora passado. Mas continuam cegos, ainda, ao não perceber que o apaziguamento não se deu pela força desse suposto destino, mas pelas ações que empreenderam, sem saber bem o que faziam, e que mudaram as condições reais, práticas, de suas vidas.
É essa mudança de vida que permite então os retornos e as retomadas dos antigos amores e projetos: o final já pode ser feliz. O sofrimento, vivido como má sina, não mudou os amores que havia, mudou as vidas de quem amava e tornou os amores possíveis. A verdade guardada no mito, que "Amores" busca revelar, é que a crença aparentemente ingênua no amor tem um poder de transformação que se rebela contra a estupidez da vida atual. A infelicidade, aqui, não é fruto de amores falhados, os amores falham porque a vida é infeliz (ou danificada, para usar uma expressão do filósofo alemão Theodor Adorno).
Mas resta sempre a cegueira. Os personagens precisam sofrer para encontrar essa verdade. Por não enxergarem os danos que a sociedade lhes impinge, danificam uma das poucas possibilidades de se rebelar contra uma tristeza e uma dor que vão além de suas individualidades: danificam a possibilidade de amar. Na impotência da cegueira, destroem (-se) em vez de mudar. Se isso acarreta as mudanças que podem recuperar a possibilidade de felicidade, é sempre por meio do mítico sofrimento.
Isso faz de "Amores" um filme -num sentido bem especial- quase panfletário, a favor da persistência das relações amorosas, a favor do amálgama entre razão e paixão. Ele retoma o sentido de algumas passagens escritas nos anos 40 por Adorno, em sua "Minima Moralia": "Se o amor deve representar na sociedade uma sociedade melhor, ele não é capaz de fazê-lo como um enclave pacífico, mas tão somente numa resistência consciente. Amar significa não deixar a imediatidade atrofiar-se por força da onipresente pressão da mediação, da economia. Só ama quem tem força para persistir no amor". ("Minima Moralia", editora Ática, 1992, p. 151)
É curioso ver o filósofo tão esquerdista e o filme tão moderno converterem-se, afinal, numa defesa do amor persistente e da confiança no casamento. Mas isso talvez faça sentido para aqueles que, de algum modo, já ficaram cegos (ou ainda estão) e já sofreram (ou ainda sofrem) por amor.


Elvis Cesar Bonassa é doutorando em filosofia na USP
Avaliação:    


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