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"STAR WARS"
O sincretismo da saga
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
Haverá quem atribua o sucesso da série "Guerra nas Estrelas"
à esmagadora campanha de
marketing, haverá quem o explique pelo fascínio dos efeitos
especiais, ou pela eficácia dos
arquétipos da história (a chamada "jornada do herói").
Tudo isso é verdade, mas talvez haja outro fator, igualmente
poderoso, mais evidente no novo episódio: o radical sincretismo religioso, histórico, político,
étnico e tecnológico do mundo
criado por George Lucas.
A sem-cerimônia com que
"Guerra nas Estrelas" mistura
traços de distintas culturas e
épocas históricas -e que o torna uma obra pós-moderna por
excelência- não é apenas um
elemento decorativo da saga,
mas um de seus vetores principais, senão o principal.
Não por acaso, a figura mais
forte desse universo é o guerreiro jedi, espécie de samurai treinado em artes marciais e armado com um sabre de laser. Passado e futuro numa só imagem.
Não por acaso também, essa
história se desenvolve num tempo indeterminado, que tanto
pode ser o futuro como o passado (embora o primeiro "Star
Wars" começasse com a frase
"Há muito tempo, numa galáxia
distante..."). Pós-modernamente, tudo se passa num tempo que
é a soma de todos os tempos.
Em "A Ameaça Fantasma", a
operação misturadora chega ao
paroxismo: épocas históricas,
paisagens, povos, estágios tecnológicos, tudo se justapõe no
mesmo espaço ficcional.
Do porão de um palácio renascentista saem naves supersônicas de combate, numa aldeia do
deserto desfilam andróides e
prodígios de realidade virtual.
Em termos políticos, a salada é
total: há uma República, mas há
também uma rainha, um Senado, uma Federação, um chanceler -e em breve, sabemos, também um Império. É duvidoso
que uma criança entenda essa
confusão, a menos que recorra à
parafernália de livros, gibis, sites
e álbuns da saga.
Um dos sincretismos mais curiosos é o religioso. Há, por um
lado, a vertente judaico-cristã,
representada pelo garoto Anakin Skywalker, concebido sem
pecado no deserto e visto como
"O Predestinado". E há o misticismo mais vago da Força, de tonalidade marcadamente oriental, sobretudo no tocante à educação espiritual e física dos
guerreiros jedi.
Mas a condensação de diferenças não se limita a essa espécie
de multiculturalismo delirante:
abarca a própria constituição
dos seres.
Em "Guerra nas Estrelas" assistimos a todas as simbioses
possíveis entre homem e bicho
(ou alienígena), bicho e máquina, máquina e homem.
Há os andróides "do bem", como R2-D2 e C-3PO, e os "do
mal", como os robôs da Federação. Há os "aliens" antropomórficos amigos, como Jar-Jar (que
só falta chamar os brancos de
"Buana"), e os inimigos, como o
que escraviza Anakin na oficina.
Que no topo dessa miríade de
formas de vida estejam os homens brancos, de preferência
anglo-saxões, seria um assunto
suficiente para outro artigo.
Não é de admirar que, do ponto de vista das referências cinematográficas, "Guerra nas Estrelas" seja igualmente uma colcha de retalhos. Elementos de
"western" misturam-se a filmes
de kung-fu, aventuras à Indiana
Jones, suspenses à Hitchcock, e
até a filmes históricos (a corrida
de "pod" que Anakin disputa é
"chupada" da corrida de bigas
de "Ben-Hur").
O mais interessante de toda essa vocação para a mistura é a
ambiguidade moral do personagem de Anakin Skywalker, que,
como todos sabem, vai virar
Darth Vader.
Inserida no contexto do mais
esquemático maniqueísmo, essa
última confusão, tão humana,
entre o bem e o mal, talvez seja a
necessária semente de vida e
tensão que impede "Guerra nas
Estrelas" de ser apenas um videogame engenhoso e vazio.
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