São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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"STAR WARS"
O sincretismo da saga

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Haverá quem atribua o sucesso da série "Guerra nas Estrelas" à esmagadora campanha de marketing, haverá quem o explique pelo fascínio dos efeitos especiais, ou pela eficácia dos arquétipos da história (a chamada "jornada do herói").
Tudo isso é verdade, mas talvez haja outro fator, igualmente poderoso, mais evidente no novo episódio: o radical sincretismo religioso, histórico, político, étnico e tecnológico do mundo criado por George Lucas.
A sem-cerimônia com que "Guerra nas Estrelas" mistura traços de distintas culturas e épocas históricas -e que o torna uma obra pós-moderna por excelência- não é apenas um elemento decorativo da saga, mas um de seus vetores principais, senão o principal.
Não por acaso, a figura mais forte desse universo é o guerreiro jedi, espécie de samurai treinado em artes marciais e armado com um sabre de laser. Passado e futuro numa só imagem.
Não por acaso também, essa história se desenvolve num tempo indeterminado, que tanto pode ser o futuro como o passado (embora o primeiro "Star Wars" começasse com a frase "Há muito tempo, numa galáxia distante..."). Pós-modernamente, tudo se passa num tempo que é a soma de todos os tempos.
Em "A Ameaça Fantasma", a operação misturadora chega ao paroxismo: épocas históricas, paisagens, povos, estágios tecnológicos, tudo se justapõe no mesmo espaço ficcional.
Do porão de um palácio renascentista saem naves supersônicas de combate, numa aldeia do deserto desfilam andróides e prodígios de realidade virtual.
Em termos políticos, a salada é total: há uma República, mas há também uma rainha, um Senado, uma Federação, um chanceler -e em breve, sabemos, também um Império. É duvidoso que uma criança entenda essa confusão, a menos que recorra à parafernália de livros, gibis, sites e álbuns da saga.
Um dos sincretismos mais curiosos é o religioso. Há, por um lado, a vertente judaico-cristã, representada pelo garoto Anakin Skywalker, concebido sem pecado no deserto e visto como "O Predestinado". E há o misticismo mais vago da Força, de tonalidade marcadamente oriental, sobretudo no tocante à educação espiritual e física dos guerreiros jedi.
Mas a condensação de diferenças não se limita a essa espécie de multiculturalismo delirante: abarca a própria constituição dos seres.
Em "Guerra nas Estrelas" assistimos a todas as simbioses possíveis entre homem e bicho (ou alienígena), bicho e máquina, máquina e homem.
Há os andróides "do bem", como R2-D2 e C-3PO, e os "do mal", como os robôs da Federação. Há os "aliens" antropomórficos amigos, como Jar-Jar (que só falta chamar os brancos de "Buana"), e os inimigos, como o que escraviza Anakin na oficina.
Que no topo dessa miríade de formas de vida estejam os homens brancos, de preferência anglo-saxões, seria um assunto suficiente para outro artigo.
Não é de admirar que, do ponto de vista das referências cinematográficas, "Guerra nas Estrelas" seja igualmente uma colcha de retalhos. Elementos de "western" misturam-se a filmes de kung-fu, aventuras à Indiana Jones, suspenses à Hitchcock, e até a filmes históricos (a corrida de "pod" que Anakin disputa é "chupada" da corrida de bigas de "Ben-Hur").
O mais interessante de toda essa vocação para a mistura é a ambiguidade moral do personagem de Anakin Skywalker, que, como todos sabem, vai virar Darth Vader.
Inserida no contexto do mais esquemático maniqueísmo, essa última confusão, tão humana, entre o bem e o mal, talvez seja a necessária semente de vida e tensão que impede "Guerra nas Estrelas" de ser apenas um videogame engenhoso e vazio.


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