|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Meu cinema respira cinema por todos os poros. E por aí vai...
ROGÉRIO SGANZERLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Engraçado : o Cinesesc -e
não uma distribuidora tradicional- abre o baú do experimental. Descaso explícito dos donos do poder cinematográfico.
Ponto para o Sesc, exibindo produto de livre exportação poética.
Inéditos ao grande público devido à irresponsabilidade de um
mercado ocupado por cobras e lagartos da pior quantidade, a mostra traz nova luz sobre uma obra
em progressão descontínua.
Em "Sem Essa Aranha" o rei do
baião (Luiz Gonzaga) confraterniza-se com o rei do breque (Moreira da Silva). Eis aí um filme de
cinema (que respira cinema por
todos os poros). E por aí vai...
São obras proféticas, sem distorções gaiatas sobre fatos reais,
vivenciados numa caligrafia capaz de levar cinéfilos ao delírio
circunstancial, devido a sua extrema criatividade. Na verdade, são
filmes de cinema maior. Práticos,
experimentais, poéticos (Jimi
Hendrix, no esotérico "O Abismo", Villegaignon, em "Viagem e
Descrição do Rio Guanabara por
Ocasião da França Antártica", de
1977, curta com Paulo Villaça,
além do básico "Nem Tudo É
Verdade", de 1985).
Atenção para o sintomático
"Mulher de Todos" (1969), em
que a atriz Helena Ignez colecionou uma série de prêmios, assim
como a montagem de uma crítica
impiedosa ao pornô -antes mesmo que tivesse sido inventado o
gênero ou subgênero- durante a
instalação da ditadura. Na tela,
um espelho do Brasil amado que
não pode ou não soube corresponder a paixão pelas coisas nossas.
"Sem Essa Aranha": um bom
filme que tenta ser péssimo e não
consegue (com cópia nova), saudado na Itália como manifesto
precursor de planos-sequências
sistemáticos (longas cenas sem
cortes), extremamente dinâmicos, com Jorge Loredo (Zé Bonitinho), Helena Ignez, Maria Gladys.
Cada cena de dois minutos de
duração fixa um instante da vida
de um banqueiro brasileiro, produto típico da concentração de riquezas nas mãos de uma falsa elite. São 15 tomadas intermináveis
sobre a trajetória de um banqueiro (ora de bicho, ora das finanças)
que se transforma em empresário
e torna-se famoso pelo loteamento de terrenos imaginários, construções-fantasmas, mansões na
favela percorridas em quase toda
a sua extensão, a supra-realidade
carioca na década do terror.
Com sua beleza contundente,
não há o que discutir. Como foram feitas, ainda em 1970, tais cenas intermináveis? Sem condições técnicas favoráveis, simplesmente usou-se a imaginação. Se
ela existe, deve ser utilizada, já dizia Méliès. Mas há um limite.
Novo filme
Meu novo filme está pronto.
Agora: distribuição, veiculação,
exportação (o jogo de esconde-esconde é ardiloso). Isso sem falar
na preservação, em que o realizador também é constantemente
fraudado. Ali está a origem da tragédia: exploração, mania de burrice e horror à inteligência. Verdadeiramente heróico é o cinema
que sobrevive e resiste a isso.
Problema central: o desperdício. Esqueçamos os manipuladores. Eles fazem parte da paisagem
entregue de mão beijada ao pior
concorrente estrangeiro. A corrupção domina vários dos estágios de comercialização, com todas as lamentações brasílicas.
O "xis" do problema cultural de
nossos tempos: permanência da
censura sob quase todas as formas de manipulação, autoritarismo ardiloso para comprimir o sucesso indiscutível de alguns abnegados, torpedeamento troglodita
do autêntico cinema. Que o filme
diga a que veio. Só um público informado poderá julgar.
Seja feita honra à verdade: meu
novo filme trata do abuso de autoridade e corre o risco de ser
atropelado por pura omissão, ignorância e preconceito.
Um filme-problema deixa de
ser o que é para se transformar
numa solução.
Deixem o filme cumprir o seu
papel. Outras áreas, fora do âmbito criativo, não têm cumprido o
seu papel -bem registrou Cacá
Diegues. E esse papel -a distribuição- tem pano para manga.
O tratamento diferenciado, frequentemente cáustico ao realizador independente, pode ser um
assunto em si mesmo, demonstrando que o abuso é praticado
sob o princípio da exclusão, com
o desperdício da omissão que
sempre acarreta filmes-problemas que ninguém quer ver. São
cidadãos incomuns que substituem a censura. Até quando?
Pior defeito é a omissão. Pensam pequeno e agem menor ainda. Alguém já indagou: teria a incompetência brasileira se concentrado no cinema? A mostra também revela a lucidez crítica de
quem sempre se opôs à injustiça.
Heróico é o cinema que sobrevive
e resiste ao chamado coro dos
(des)contentes.
Rogério Sganzerla é cineasta, diretor
de "O Bandido da Luz Vermelha" (68) e
"Nem Tudo É Verdade" (86), entre outros
filmes
Texto Anterior: Festival: Com "Sem Essa Aranha", Sganzerla faz filme inaugural Próximo Texto: Teatro: Bonecos japoneses se articulam no Sesc Índice
|