São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE
Meu cinema respira cinema por todos os poros. E por aí vai...

ROGÉRIO SGANZERLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Engraçado : o Cinesesc -e não uma distribuidora tradicional- abre o baú do experimental. Descaso explícito dos donos do poder cinematográfico. Ponto para o Sesc, exibindo produto de livre exportação poética. Inéditos ao grande público devido à irresponsabilidade de um mercado ocupado por cobras e lagartos da pior quantidade, a mostra traz nova luz sobre uma obra em progressão descontínua.
Em "Sem Essa Aranha" o rei do baião (Luiz Gonzaga) confraterniza-se com o rei do breque (Moreira da Silva). Eis aí um filme de cinema (que respira cinema por todos os poros). E por aí vai...
São obras proféticas, sem distorções gaiatas sobre fatos reais, vivenciados numa caligrafia capaz de levar cinéfilos ao delírio circunstancial, devido a sua extrema criatividade. Na verdade, são filmes de cinema maior. Práticos, experimentais, poéticos (Jimi Hendrix, no esotérico "O Abismo", Villegaignon, em "Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da França Antártica", de 1977, curta com Paulo Villaça, além do básico "Nem Tudo É Verdade", de 1985).
Atenção para o sintomático "Mulher de Todos" (1969), em que a atriz Helena Ignez colecionou uma série de prêmios, assim como a montagem de uma crítica impiedosa ao pornô -antes mesmo que tivesse sido inventado o gênero ou subgênero- durante a instalação da ditadura. Na tela, um espelho do Brasil amado que não pode ou não soube corresponder a paixão pelas coisas nossas.
"Sem Essa Aranha": um bom filme que tenta ser péssimo e não consegue (com cópia nova), saudado na Itália como manifesto precursor de planos-sequências sistemáticos (longas cenas sem cortes), extremamente dinâmicos, com Jorge Loredo (Zé Bonitinho), Helena Ignez, Maria Gladys.
Cada cena de dois minutos de duração fixa um instante da vida de um banqueiro brasileiro, produto típico da concentração de riquezas nas mãos de uma falsa elite. São 15 tomadas intermináveis sobre a trajetória de um banqueiro (ora de bicho, ora das finanças) que se transforma em empresário e torna-se famoso pelo loteamento de terrenos imaginários, construções-fantasmas, mansões na favela percorridas em quase toda a sua extensão, a supra-realidade carioca na década do terror.
Com sua beleza contundente, não há o que discutir. Como foram feitas, ainda em 1970, tais cenas intermináveis? Sem condições técnicas favoráveis, simplesmente usou-se a imaginação. Se ela existe, deve ser utilizada, já dizia Méliès. Mas há um limite.

Novo filme
Meu novo filme está pronto. Agora: distribuição, veiculação, exportação (o jogo de esconde-esconde é ardiloso). Isso sem falar na preservação, em que o realizador também é constantemente fraudado. Ali está a origem da tragédia: exploração, mania de burrice e horror à inteligência. Verdadeiramente heróico é o cinema que sobrevive e resiste a isso.
Problema central: o desperdício. Esqueçamos os manipuladores. Eles fazem parte da paisagem entregue de mão beijada ao pior concorrente estrangeiro. A corrupção domina vários dos estágios de comercialização, com todas as lamentações brasílicas.
O "xis" do problema cultural de nossos tempos: permanência da censura sob quase todas as formas de manipulação, autoritarismo ardiloso para comprimir o sucesso indiscutível de alguns abnegados, torpedeamento troglodita do autêntico cinema. Que o filme diga a que veio. Só um público informado poderá julgar.
Seja feita honra à verdade: meu novo filme trata do abuso de autoridade e corre o risco de ser atropelado por pura omissão, ignorância e preconceito.
Um filme-problema deixa de ser o que é para se transformar numa solução.
Deixem o filme cumprir o seu papel. Outras áreas, fora do âmbito criativo, não têm cumprido o seu papel -bem registrou Cacá Diegues. E esse papel -a distribuição- tem pano para manga.
O tratamento diferenciado, frequentemente cáustico ao realizador independente, pode ser um assunto em si mesmo, demonstrando que o abuso é praticado sob o princípio da exclusão, com o desperdício da omissão que sempre acarreta filmes-problemas que ninguém quer ver. São cidadãos incomuns que substituem a censura. Até quando?
Pior defeito é a omissão. Pensam pequeno e agem menor ainda. Alguém já indagou: teria a incompetência brasileira se concentrado no cinema? A mostra também revela a lucidez crítica de quem sempre se opôs à injustiça. Heróico é o cinema que sobrevive e resiste ao chamado coro dos (des)contentes.


Rogério Sganzerla é cineasta, diretor de "O Bandido da Luz Vermelha" (68) e "Nem Tudo É Verdade" (86), entre outros filmes


Texto Anterior: Festival: Com "Sem Essa Aranha", Sganzerla faz filme inaugural
Próximo Texto: Teatro: Bonecos japoneses se articulam no Sesc
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.