São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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Cabra marcado para matar

É Tudo Verdade apresenta o filme israelense "Z32", que desvenda assassino de guerra

Divulgação
"Z32" preserva identidade de ex-soldade que usa esse codinome, cobrindo seu rosto com máscara digital

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu nunca faria um filme sobre um torturador porque, se o fizesse, acabaria entendendo as razões dele."
Esse foi um limite que se autoimpôs o diretor Eduardo Coutinho, autor do clássico "Cabra Marcado para Morrer" (1964/1984), no qual recompõe a história do assassinato de um líder camponês.
O 14º Festival Internacional de Documentários - É Tudo Verdade exibe hoje um filme israelense que aceita o desafio evitado por Coutinho -entender as razões de quem comete uma perversidade.
"Z32", de Avi Mograbi, trata da experiência de um jovem soldado israelense que matou dois policiais palestinos, num ato de vingança a baixas sofridas pelo Exército de Israel.
Outros títulos do diretor -incluindo "Agosto - Um Momento Antes da Explosão", com o qual venceu o festival em 2002- integram um ciclo em sua homenagem (veja quadro abaixo, à dir.).
O pacifista Mograbi deparou-se com a história enquanto catalogava depoimentos colhidos pela fundação Shovrim Shtika, cujo objetivo é a "quebra do silêncio" em torno do incômodo tema da guerra -e seus crimes.
"Ouvi dezenas e dezenas de depoimentos. A certa altura, ouvi o Z32 [código que substitui a identidade do depoente]. Achei extremamente interessante e pensei que alguém deveria fazer um filme sobre ele, mas não eu", diz Mograbi.

Atitude antagônica
O diretor não se achava adequado para contar a história de Z32, porque isso implicaria "criar uma relação com essa pessoa, eventualmente ter alguma empatia com ela", contrariamente aos princípios que sedimentou em seus filmes.
"Minha atitude, em geral, é antagônica ao fato que filmo. Tento captar as situações e acontecimentos, sem fazer entrevistas", afirma Mograbi.
Porém, o cineasta achou que "a força da história de Z32" era "superior aos métodos" que ele acalentava e propôs ao ex-soldado transformá-la num filme.
Z32 impôs uma condição: que sua identidade não fosse revelada, o que pareceu ao diretor "um terrível obstáculo", porque, "quando você faz um filme baseado na história de alguém, não quer seu protagonista escondido. Você quer ver os olhos dele, a expressão de seu rosto, o efeito emocional que aquilo que ele diz produz em seu próprio corpo ", afirma.
Forçado a encontrar uma solução, o diretor optou por ora borrar o rosto de Z32 ora sobrepor a ele uma feição construída digitalmente. "As máscaras se tornaram um aspecto do modo de contar a história, ao transformarem-no em alguém que pode ser ninguém ou, talvez, todo mundo", diz o diretor.
Mograbi desaconselhou Z32 a ir a sessões públicas do filme em Tel Aviv, o que seria "arriscado demais", em sua avaliação. "Mas amigos meus vieram me dizer que o haviam visto sentado no cinema", conta.
Embora não fosse verdade, o cineasta gostou do que ouviu. "Quando as pessoas começam a olhar para os jovens na plateia e perguntar a si mesmas se o cara ao lado pode ser o cara do filme, subitamente uma história concreta sobre uma pessoa se torna uma história mais abstrata sobre uma comunidade, o que é muito importante para mim."
Nos dois debates de que participará em São Paulo -dia 1º, no clube A Hebraica, às 20h30, e dia 3, no Sesc Avenida Paulista, às 10h-, Mograbi espera encontrar interlocutores também dispostos a ver seu filme por uma perspectiva mais ampla.

"Máquinas de guerra"
"Tenho a expectativa de discutir os valores artísticos e políticos que estão no filme. E acho que a principal questão política apresentada pelo filme é mais ampla do que o conflito específico que temos aqui, no Oriente Médio. Muitos países treinaram seus adolescentes para ser soldados, ser máquinas de guerra, não pensar em termos morais, não refletir sobre o que fazem, não duvidar, não discutir as ordens que recebem, para cometer crimes de guerra", diz.
Ocorre que, "quando você treina pessoas para matar, é preciso lidar com os efeitos disso na sociedade civil, quando elas voltam para casa", observa.
Sobre a atitude de Z32, particularmente, Mograbi diz: "Óbvio que não tenho empatia pelo que ele fez, mas acho que, embora ele tenha inteira responsabilidade pelos seus atos, ele também tem uma responsabilidade parcial, porque era um pequeno elo de uma grande cadeia de comando que havia acima dele. Num certo sentido, ele também é uma vítima desse acontecimento, vítima de um sistema que o pressionou para ser uma máquina de guerra".


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