|
Próximo Texto | Índice
CINEMA
Mostra no CCBB, com 21 filmes e vídeos de cineastas como François Truffaut, abrange produções de 1942 a 2000
Noir francês evidencia personagens realistas
Divulgação
|
O ator Lino Ventura (de terno) em cena de "Testamento de um Gângster", longa-metragem de 1963 dirigido por Georges Lautner |
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Foi na prisão, detido por deserção, que o jovem François
Truffaut recebeu do escritor Jean
Genet, então seu protetor, os romances policiais da "Série Noire",
vários dos quais o futuro cineasta
acabaria levando para as telas.
A história da influência dessa famosa coleção sobre os cineastas
franceses do pós-guerra parece
ser o mote central da mostra que
se inicia amanhã na Centro Cultural do Banco do Brasil, "O Lado
Escuro da Tela - Filme Noir Francês". Mas, mesmo na França, no
que concerne à história do mais
inteligente dos gêneros modernos, essa referência constitui apenas um dos capítulos.
Não se pode falar de "noir francês", por exemplo, deixando de
lado os clássicos dos anos 30, da
geração de Renoir, Duvivier, Marcel Carné e Pierre Chenal, vários
deles refilmados em Hollywood,
nos anos 40. Também não se pode
esquecer dos filmes que marcaram a passagem, pela França dos
anos 30, de cineastas como Fritz
Lang, Robert Siodmack, Curt Bernhardt e Billy Wilder, foragidos
do nazismo. É seguindo o périplo
transnacional desses cineastas
que podemos começar a entender
um pouco da complexa história
do gênero.
O germe cinematográfico do
noir vem da Alemanha dos anos
20, dos chamados "filmes de rua",
considerados uma vertente do expressionismo. Filmes em que os
protagonistas, invariavelmente
burgueses de meia-idade, inebriados pelos encantos da vida urbana, buscavam nas ruas vazão para
seus desejos reprimidos. Esses filmes refletiam o que Georg Simmel uma vez denominou, em seu
célebre ensaio "A Metrópole e a
Vida Mental", as novas "condições psicológicas" criadas pela vida urbana moderna.
Na mesma época, Freud demonstrou, por outra via, que essas condições não eram tão novas
assim: se, mesmo flertando com o
lado negro da vida urbana e suas
"mulheres fatais", esses protagonistas burgueses dos "filmes de
rua" não conseguiam satisfazer
seus desejos, era um pouco porque a inibição dos desejos formava a base da própria civilização.
Quando, depois de passar pela
França, nos anos 30, cineastas cujo início de carreira se dera na
Alemanha dos anos 20 aportaram
em Hollywood, na década de 40, o
cinema americano descobriu
Freud e nunca mais foi o mesmo.
Bandidos e mocinhos igualaram-se nas mesmas pulsões.
O noir francês dos anos 30, mais
progressista, preferia culpar os
ambientes sociais. O componente
psicológico existia, mas os personagens não eram tanto vítimas de
suas pulsões quanto do ambiente
social. A mesma geografia (suburbana) e a mesma opção estética
(claro/escuro) subsistiam como
expressão do "lado negro" da vida. Influenciados tanto pelo cinema alemão quanto pela literatura
policial americana, os franceses
de 30 inspiraram os americanos
de 40/50 que, por sua vez, serviram de inspiração para os franceses de 50/60.
A potencialidade cinematográfica da literatura americana só foi
descoberta pelos próprios americanos através dos franceses. Na
mesma época, início dos 40, o
neo-realismo italiano nascia, com
"Ossessione" (1942), de um livro
de James M. Cain, "The Postman
Always Rings Twice", que Renoir
emprestara ao ex-assistente Luchino Visconti. Para André Bazin,
o mais canônico dos críticos franceses, era na Itália que o cinema
da literatura neo-realista americana começava a se realizar. "É um
dos grandes méritos do cinema
italiano", dizia ele, "ter sabido encontrar para a tela um equivalente
propriamente cinematográfico da
mais importante revolução literária moderna".
Sementeira do cinema moderno, o noir só ganhou verdadeiramente as ruas nas releituras do
pós-guerra. As ruas de Paris são o
verdadeiro fim dos flertes de cineastas como Jean-Pierre Melville, Jean-Luc Godard e François
Truffaut com o noir. E, apesar da
origem de suas releituras estar
sempre em algum romance da
"Série Noire", estas não passavam
de homenagens desbragadas ao
cinema americano.
Seus filmes eram tributos bastante pessoais em que os tipos sociais e psicológicos do noir clássico se viam substituídos por alter
egos dos próprios diretores. Em
"Atirem no Pianista", Truffaut filmava sua própria timidez, em
"Les Doulos", Melville reinventava as "más companhias" de sua
juventude e, em "Bande à Part",
Godard alardeava suas paixões de
ocasião: Anna Karina e a fórmula
"a girl and a gun" do cinema norte-americano. "Os personagens
são justos, verdadeiros, representam a vida", dizia Godard sobre o
filme, "e é o mundo em volta deles
que se faz cinema, que vive um roteiro ruim". E o que dizer do
mundo de hoje?
Próximo Texto: Debate: Depressão é tema de "Diálogos" Índice
|