UOL


São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2003

Próximo Texto | Índice

CINEMA

Mostra no CCBB, com 21 filmes e vídeos de cineastas como François Truffaut, abrange produções de 1942 a 2000

Noir francês evidencia personagens realistas

Divulgação
O ator Lino Ventura (de terno) em cena de "Testamento de um Gângster", longa-metragem de 1963 dirigido por Georges Lautner


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Foi na prisão, detido por deserção, que o jovem François Truffaut recebeu do escritor Jean Genet, então seu protetor, os romances policiais da "Série Noire", vários dos quais o futuro cineasta acabaria levando para as telas.
A história da influência dessa famosa coleção sobre os cineastas franceses do pós-guerra parece ser o mote central da mostra que se inicia amanhã na Centro Cultural do Banco do Brasil, "O Lado Escuro da Tela - Filme Noir Francês". Mas, mesmo na França, no que concerne à história do mais inteligente dos gêneros modernos, essa referência constitui apenas um dos capítulos.
Não se pode falar de "noir francês", por exemplo, deixando de lado os clássicos dos anos 30, da geração de Renoir, Duvivier, Marcel Carné e Pierre Chenal, vários deles refilmados em Hollywood, nos anos 40. Também não se pode esquecer dos filmes que marcaram a passagem, pela França dos anos 30, de cineastas como Fritz Lang, Robert Siodmack, Curt Bernhardt e Billy Wilder, foragidos do nazismo. É seguindo o périplo transnacional desses cineastas que podemos começar a entender um pouco da complexa história do gênero.
O germe cinematográfico do noir vem da Alemanha dos anos 20, dos chamados "filmes de rua", considerados uma vertente do expressionismo. Filmes em que os protagonistas, invariavelmente burgueses de meia-idade, inebriados pelos encantos da vida urbana, buscavam nas ruas vazão para seus desejos reprimidos. Esses filmes refletiam o que Georg Simmel uma vez denominou, em seu célebre ensaio "A Metrópole e a Vida Mental", as novas "condições psicológicas" criadas pela vida urbana moderna.
Na mesma época, Freud demonstrou, por outra via, que essas condições não eram tão novas assim: se, mesmo flertando com o lado negro da vida urbana e suas "mulheres fatais", esses protagonistas burgueses dos "filmes de rua" não conseguiam satisfazer seus desejos, era um pouco porque a inibição dos desejos formava a base da própria civilização. Quando, depois de passar pela França, nos anos 30, cineastas cujo início de carreira se dera na Alemanha dos anos 20 aportaram em Hollywood, na década de 40, o cinema americano descobriu Freud e nunca mais foi o mesmo. Bandidos e mocinhos igualaram-se nas mesmas pulsões.
O noir francês dos anos 30, mais progressista, preferia culpar os ambientes sociais. O componente psicológico existia, mas os personagens não eram tanto vítimas de suas pulsões quanto do ambiente social. A mesma geografia (suburbana) e a mesma opção estética (claro/escuro) subsistiam como expressão do "lado negro" da vida. Influenciados tanto pelo cinema alemão quanto pela literatura policial americana, os franceses de 30 inspiraram os americanos de 40/50 que, por sua vez, serviram de inspiração para os franceses de 50/60.
A potencialidade cinematográfica da literatura americana só foi descoberta pelos próprios americanos através dos franceses. Na mesma época, início dos 40, o neo-realismo italiano nascia, com "Ossessione" (1942), de um livro de James M. Cain, "The Postman Always Rings Twice", que Renoir emprestara ao ex-assistente Luchino Visconti. Para André Bazin, o mais canônico dos críticos franceses, era na Itália que o cinema da literatura neo-realista americana começava a se realizar. "É um dos grandes méritos do cinema italiano", dizia ele, "ter sabido encontrar para a tela um equivalente propriamente cinematográfico da mais importante revolução literária moderna".
Sementeira do cinema moderno, o noir só ganhou verdadeiramente as ruas nas releituras do pós-guerra. As ruas de Paris são o verdadeiro fim dos flertes de cineastas como Jean-Pierre Melville, Jean-Luc Godard e François Truffaut com o noir. E, apesar da origem de suas releituras estar sempre em algum romance da "Série Noire", estas não passavam de homenagens desbragadas ao cinema americano.
Seus filmes eram tributos bastante pessoais em que os tipos sociais e psicológicos do noir clássico se viam substituídos por alter egos dos próprios diretores. Em "Atirem no Pianista", Truffaut filmava sua própria timidez, em "Les Doulos", Melville reinventava as "más companhias" de sua juventude e, em "Bande à Part", Godard alardeava suas paixões de ocasião: Anna Karina e a fórmula "a girl and a gun" do cinema norte-americano. "Os personagens são justos, verdadeiros, representam a vida", dizia Godard sobre o filme, "e é o mundo em volta deles que se faz cinema, que vive um roteiro ruim". E o que dizer do mundo de hoje?


Próximo Texto: Debate: Depressão é tema de "Diálogos"
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.