São Paulo, quarta-feira, 31 de julho de 2002

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CINEMA

Retrospectiva mostra hoje "Conseguirão os Nossos Heróis Encontrar o Amigo Misteriosamente Desaparecido na África?"

Scola entrevê o "outro" no espelho da telona

Divulgação
O ator Gérard Depardieu em cena de "Concorrência Desleal", de Ettore Scola, que é exibido hoje


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Quando pousa em território africano, o protagonista de "Conseguirão os Nossos Heróis Encontrar o Amigo Misteriosamente Desaparecido na África?" (1968), um burguês italiano em crise (Alberto Sordi), editor cheio de clichês literários na cabeça, desembarca com sua filmadora disposto a encontrar o seu "outro".
Mas, logo na saída, é ele que, surpreendido com a câmera e todo o seu aparato de turista clássico, é filmado como uma patética personagem etnocêntrica por um cineasta africano. O burguês europeu em busca de aventuras se vislumbra por um momento no espelho (a câmera do africano).
Ele, que estava em busca do "outro", toma consciência, por um instante apenas, de si mesmo e do próprio ridículo.
O mesmo jogo especular da gag desse malfadado pastiche do "Coração das Trevas" conradiano, rodado na África por Scola em pleno 1968 e cuja cópia apresentada na mostra em cartaz até amanhã no Cinesesc está longe de ser razoável, encontramos em comédias posteriores do cineasta.

Fascismo
O espelho das famílias vizinhas de alfaiates de "Concorrência Desleal" (2000), outro filme programado na retrospectiva, é uma repetição do esquema criado em "Um Dia Muito Especial" (1977), que estréia na próxima sexta-feira em São Paulo.
Neste, o vizinho homossexual, interpretado por Marcello Mastroianni, era o reflexo no espelho que a dona-de-casa vivida por Sophia Loren precisava vislumbrar para transcender o cotidiano embrutecedor e tomar consciência do chauvinismo da cultura fascista que sua família reproduzia.
Em "Concorrência Desleal", ambientado na mesma época, durante a visita de Hitler a Mussolini na Roma de 1938, ele cria um esquema semelhante: passando da grande à pequena história, aborda a concorrência entre duas famílias de alfaiates, uma judia outra católica, numa rua da cidade.
Se a deslealdade da concorrência nasce, a princípio, das iniciativas comerciais dos judeus, acaba atrozmente invertida pelas leis raciais promulgadas pelos fascistas. A família católica identifica-se no espelho: a desgraça da família judia a faz transcender o cotidiano de desavenças comerciais e tomar consciência das injustiças da lei e do anti-semitismo fascistas.
"O Jantar", também programado para hoje, é outra obra recente e recorrente do cineasta italiano. Scola repete os mesmos temas e prosas de outros filmes seus ("O Terraço", especialmente) sem o brilho de outros tempos (dos anos 70 sobretudo).
Seja como for, ele nunca deixou de entrever a figura do conformista, essa espécie de terceiridade de sua obra, esse permanente "outro" de sua persona cinematográfica, do outro lado, no espelho.



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