São Paulo, Terça-feira, 31 de Agosto de 1999
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Bispo transcendeu a loucura com arte

CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha

No quintal de sua casa, Arthur Bispo do Rosário (1909/11-1989) viu sete anjos descerem do céu à meia-noite do dia 22 de dezembro de 1938. Depois, vagou dias pelas ruas do Rio de Janeiro, arrebatado por aquela visão que, para a psicologia tradicional, indiciava surto psicótico, motivo suficiente para uma internação imediata numa "casa de loucos", como ocorreu naquele ano mesmo, quando ele foi levado para Hospital de Alienados da Praia Vermelha.
Começava ali a via-crúcis de Bispo do Rosário, ex-marinheiro e pugilista negro, pobre, mas que, a partir daquele momento, procedia à honrosa tarefa de reunir a maior quantidade possível de objetos para o dia do Juízo Final, seguindo a determinação daqueles anjos que desceram do céu para instruí-lo.
"Cada louco é guiado por um cadáver. Ele só fica bom quando se livra desse morto", disse certa vez o artista. E ele exorcizou o morto vivendo uma vida-ritual, constantemente ascendendo ao plano místico, que era o cosmos ao qual pertencia. Alguns objetos reunidos (e criados) por Bispo do Rosário -como a série "Rosângela", feita para uma estudante de psicologia por quem o artista nutriu uma paixão platônica nos últimos anos de vida- estão agora na Casa das Rosas integrando a mostra "Transcendência".
Durante sua internação no hospício do Engenho de Dentro, onde viveu por quase 50 anos, Bispo do Rosário confeccionou mais de mil peças, que ocupavam dez quartos do hospital, refazendo sem saber obras de Jasper Johns e Marcel Duchamps. Chamava aqueles objetos de "registros de minha passagem pela Terra".
A importância dessa obra involuntária estaria, para o crítico Frederico Morais, "no fato de ser um dos mais pungentes testemunhos sobre a importância do ato criador, como veículo de afirmação da dignidade do ser humano".
Em 1984, Morais convidou o artista para a realização de uma grande exposição de suas obras no Museu de Arte Moderna carioca. Ele recusou, dizendo que aquele apanhado de objetos destinados à celebração e ao exorcismo pessoal não despertaria interesse nos homens do mundo prosaico. Enganou-se. Foi delírio. Basta saber que Bispo ganhou uma sala especial na Bienal de Veneza de 1995. Hoje, integra "Transcendência", pois é integralmente transcendente sua obra com relação à arte e àquilo que se chama de loucura.


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