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Bispo transcendeu a loucura com arte
CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha
No quintal de sua casa, Arthur
Bispo do Rosário (1909/11-1989)
viu sete anjos descerem do céu à
meia-noite do dia 22 de dezembro
de 1938. Depois, vagou dias pelas
ruas do Rio de Janeiro, arrebatado por aquela visão que, para a
psicologia tradicional, indiciava
surto psicótico, motivo suficiente
para uma internação imediata
numa "casa de loucos", como
ocorreu naquele ano mesmo,
quando ele foi levado para Hospital de Alienados da Praia Vermelha.
Começava ali a via-crúcis de
Bispo do Rosário, ex-marinheiro
e pugilista negro, pobre, mas que,
a partir daquele momento, procedia à honrosa tarefa de reunir a
maior quantidade possível de objetos para o dia do Juízo Final, seguindo a determinação daqueles
anjos que desceram do céu para
instruí-lo.
"Cada louco é guiado por um
cadáver. Ele só fica bom quando
se livra desse morto", disse certa
vez o artista. E ele exorcizou o
morto vivendo uma vida-ritual,
constantemente ascendendo ao
plano místico, que era o cosmos
ao qual pertencia. Alguns objetos
reunidos (e criados) por Bispo do
Rosário -como a série "Rosângela", feita para uma estudante de
psicologia por quem o artista nutriu uma paixão platônica nos últimos anos de vida- estão agora
na Casa das Rosas integrando a
mostra "Transcendência".
Durante sua internação no hospício do Engenho de Dentro, onde viveu por quase 50 anos, Bispo
do Rosário confeccionou mais de
mil peças, que ocupavam dez
quartos do hospital, refazendo
sem saber obras de Jasper Johns e
Marcel Duchamps. Chamava
aqueles objetos de "registros de
minha passagem pela Terra".
A importância dessa obra involuntária estaria, para o crítico Frederico Morais, "no fato de ser um
dos mais pungentes testemunhos
sobre a importância do ato criador, como veículo de afirmação
da dignidade do ser humano".
Em 1984, Morais convidou o artista para a realização de uma
grande exposição de suas obras
no Museu de Arte Moderna carioca. Ele recusou, dizendo que
aquele apanhado de objetos destinados à celebração e ao exorcismo pessoal não despertaria interesse nos homens do mundo prosaico. Enganou-se. Foi delírio.
Basta saber que Bispo ganhou
uma sala especial na Bienal de Veneza de 1995. Hoje, integra
"Transcendência", pois é integralmente transcendente sua
obra com relação à arte e àquilo
que se chama de loucura.
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