São Paulo, domingo, 22 de março de 2009
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Caribe abaixo de zero

por CLAUDIO ANGELO

Longe de ser um deserto marinho, o oceano austral pode ter biodiversidade comparável à dos mares tropicais. é o que sugere o primeiro inventário de suas espécies

A superfície do oceano Austral divide duas Antártidas. Acima da linha d’água, tudo é branco e preto. Só aves, focas e os eventuais seres humanos quebram a monotonia da paisagem de gelo e rocha. É abaixo dela que o continente esconde as suas cores: todos os tons de vermelho, azul e amarelo, impressos em criaturas que vão da mais modesta alga unicelular até o maior animal que já habitou a Terra, a baleia-azul. Se o interior da Antártida é o maior dos desertos, seu mar pode ser uma das regiões mais ricas em vida do planeta –uma riqueza que só agora começa a ser avaliada pelos cientistas.

"A diversidade lá é muito mais alta do que se imaginava. Pode ser maior do que a do Caribe", empolga-se a oceanógrafa Lúcia de Siqueira Campos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A brasileira é uma das coordenadoras do Censo da Vida Marinha Antártica, ou CAML, um esforço internacional de pesquisas iniciado em 2005 para inventariar as espécies do oceano Austral.

Se a foto à esquerda não for argumento suficiente, uma cifra do CAML talvez ajude a dar uma dimensão da diversidade ainda oculta nos mares polares: em apenas três cruzeiros de pesquisa realizados ao norte do mar de Weddell pelo navio quebra-gelo alemão Polarstern, foram identificadas 800 novas espécies de invertebrados marinhos, 700 delas somente de isópodes (um tipo de crustáceo), mais do que dobrando o número de espécies do grupo conhecidas até então.

"Podemos dizer que o censo fará o número de espécies explodir", afirma o belga Bruno Danis, coordenador do Scarmarbin (www.scarmarbin.be), uma base de dados on-line que reúne todas as espécies descritas até hoje no oceano Austral. Na conclusão deste texto, havia 7.353 espécies registradas no site, um número que continua crescendo à medida que amostras vão chegando das expedições à Antártida para serem analisadas em laboratórios do mundo inteiro.

"Estamos descobrindo espécies novas mais rápido do que conseguimos publicar em artigos científicos", diz Victoria Wadley, da Divisão Antártica Australiana, gerente do CAML. "Os livros dizem que os oceanos tropicais têm mais espécies que os polares. Para muitos grupos que estudamos, isso não é verdade."

A imagem tradicional do oceano Austral como um local rico em biomassa, mas pobre em biodiversidade, se deve a vários fatores. Primeiro, a pura falta de conhecimento. Pesquisar ali é difícil e caro, e até hoje apenas uma fração do mar antártico foi varrida por navios de pesquisa. Depois, parte da fauna e da flora submarinas está em lugares permanentemente inacessíveis, como debaixo de plataformas de gelo, línguas glaciais flutuantes com dezenas ou centenas de metros de espessura. Nesse sentido, a humanidade tem dado uma contribuição involuntária ao CAML ao queimar gases de efeito estufa e acelerar o aquecimento global: a primeira expedição do censo foi investigar justamente que animais havia sob a plataforma Larsen B, que se desintegrou em 2002 (e havia muitos, diz o alemão Julian Gutt, autor da foto que abre esta reportagem).

Finalmente, a maior parte da diversidade antártica não vive livre na água, mas sim no assoalho marinho, a grandes profundidades. "A diversidade no fundo do mar é extraordinária", diz Lúcia Campos.

Os ciclos de gelo e degelo, explica, produzem muito material orgânico. Isso porque, associadas ao gelo marinho que se forma no inverno, existem algas microscópicas que se desprendem quando ele derrete no verão e se espalham pela coluna d’água. Além disso, o congelamento do mar acaba empurrando para o fundo água mais salgada (e densa) e cheia de oxigênio, uma festa para os seres vivos. Há uma variedade de habitats ainda pouco conhecidos no leito do oceano Austral, como as chamadas zonas de exudação fria, chaminés submarinas que expelem gases, em torno das quais se desenvolve uma fauna peculiar.

O Brasil deve começar a contribuir mais fortemente com essa explosão de conhecimento sobre a biodiversidade antártica a partir do mês que vem, quando chegam ao Rio as amostras coletadas pelo grupo de Lúcia Campos.

Pela primeira vez em 27 anos, cientistas brasileiros conseguiram realizar coletas de organismos do fundo do mar a 1.100 metros (o navio polar brasileiro, o Ary Rongel, não possuía até o ano passado equipamento para fazer esse tipo de sondagem, trivial em oceanografia).

Também pela primeira vez foi usado um robô-mergulhador para fazer imagens do fundo do mar em locais aonde humanos não chegam (veja box à esq.). Campos quer usar o veículo no ano que vem para investigar se há ossadas de baleia no fundo da baía do Almirantado, onde fica a estação brasileira, e se há uma fauna distinta associada a essas ossadas.

Além de serem analisadas por taxonomistas, que identificarão eventuais espécies novas, as amostras de organismos coletadas na Antártida serão comparadas com a fauna da margem continental brasileira profunda, para tentar responder a outra questão: quão isoladas as espécies antárticas estão do restante do planeta, inclusive do Brasil.

A comparação de faunas será feita já sob o guarda-chuva do recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Antártico de Ciências Ambientais, para o qual os pesquisadores da UFRJ receberam do governo R$ 7 milhões.

Auto-estrada submarina

A Antártida virou um ecossistema à parte há 33 milhões de anos. Até 50 milhões de anos atrás, ela ainda estava ligada à América do Sul, o que bloqueava as correntes oceânicas frias e ajudava a manter amenas as temperaturas. À medida que a Antártida se afastava devido à deriva continental, essas correntes passaram a fluir entre os dois continentes, isolando as terras austrais. Há 33 milhões de anos, esses processos levaram ao estabelecimento de um extenso manto de gelo sobre o continente e da Corrente Circumpolar Antártica. Essa corrente, alimentada por águas dos três oceanos, marca a transição entre a Antártida e o resto do mundo. Ela forma uma fronteira física, a Convergência Antártica, ao sul da qual a temperatura da água cai bruscamente e o mar é permanentemente tempestuoso.

Pelo menos na superfície, a Convergência forma uma barreira que impede a migração de espécies antárticas para o norte e a entrada de animais do norte, como tubarões, em águas polares. Baleias e cientistas são praticamente as únicas criaturas que ignoram essa fronteira.

Esse isolamento permitiu a evolução de uma série de criaturas endêmicas, ou seja, que só ocorrem na Antártida. As mais notáveis são os "icefish", os peixes-gelo, que não têm hemoglobina no sangue e em cujas veias correm proteínas anticongelantes, que lhes permitem viver em temperaturas de até -2º C.

Os cientistas sabem, no entanto, que muito abaixo da superfície existem massas de água densas e salinas que o oceano Austral lança em direção ao Atlântico, ao Índico e ao Pacífico. Uma das questões que eles estão tentando responder é se essas massas de água também funcionam como "estradas" para a biodiversidade.

A resposta parece ser sim. Uma das evidências disso vem sendo levantada por um aluno de Campos, Rafael de Moura. O carioca é especialista em pepinos-do-mar, primos das estrelas-do-mar. Ele descobriu pelo menos três espécies que habitam simultaneamente o oceano Austral e a margem continental brasileira, a profundidades que variam de 1.100 a 1.600 metros. Ele agora quer analisar o DNA desses animais para saber se as populações do Atlântico e as do oceano Austral estão em processo de isolamento, em vias de originar novas espécies.

Um outro grupo, do Reino Unido, foi além: descobriu que as massas de água submarinas da Antártida não só funcionam como corredor de trânsito de animais como também podem ser vias para a "exportação" de fauna que evoluiu nas condições extremas do oceano Austral.

Em um estudo publicado em novembro no periódico científico "Cladistics", o grupo comparou o DNA dos polvos antárticos com o de polvos de águas profundas dos três oceanos. Essas criaturas desenvolveram características peculiares ao longo da evolução, como a perda da bolsa de tinta –inútil em grandes profundidades, onde o mar é escuro.

A análise genética revelou que os polvos de profundidade têm todos um ancestral comum na Antártida, uma criatura cujos descendentes se espalharam pelo planeta há 15 milhões de anos, quando o manto de gelo antártico se expandiu e a massa de água fria submarina exportada para o resto do mundo aumentou.

"O oceano Austral é um potencial celeiro de especiação para vários grupos, e esses grupos acabam colonizando o restante dos oceanos", diz Bruno Danis. Um dos colaboradores de Lúcia Campos no Chile, Elie Poulin, tem mostrado que, com alguns grupos de animais, o inverso também pode acontecer: há evidências de que espécies de ouriço-do-mar originadas em águas mais quentes ao norte tenham emigrado para a Antártida.

Penetras

Nem todos os imigrantes são bem-vindos, no entanto. O biólogo Marcos Tavares, da USP, descobriu em 2004 uma evidência de invasão recente do oceano Austral que pode prenunciar um desastre ambiental. Ele viu que caranguejos-gigantes da espécie Hyas aranaeus, vindos do Atlântico Norte, burlaram a Convergência e entraram em águas antárticas.

Esses predadores vorazes nunca antes haviam sido vistos na zona polar. Sua entrada pode ser um sinal de que o aquecimento global, ao aumentar as temperaturas de parte do oceano Austral, já esteja diminuindo o isolamento da Antártida. "Pescar um caranguejo não prova muita coisa", diz Campos. "Entre chegar lá e ficar existe uma distância."

De qualquer maneira, afirma, o achado acendeu uma luz amarela. Se os caranguejos colonizarem o oceano polar, nada impede que outras espécies também o façam –tubarões, por exemplo. E aí a Antártida pode ficar realmente muito parecida com o Caribe. No mau sentido.


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