São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Escorregão fatal

por FLÁVIO DIEGUEZ

O aquecimento global está “emagrecendo" a antártida, fazendo seu gelo escoar mais rápido para o oceano. Isso pode causar uma elevação no nível do mar bem maior do que a prevista até agora.

A ideia de um continente inteiro escorregando para dentro do oceano é impressionante. Se o manto de gelo antártico derreter, o nível do mar pode subir pelo menos 60 metros. Muitas das grandes cidades do mundo, como Nova York e o Rio de Janeiro, ficariam submersas. Não que a Antártida seja eterna: todos os anos, a capa glacial que cobre o continente “engorda" 1,5 quatrilhão de toneladas na forma de neve e, ao mesmo tempo, “emagrece" outro tanto, na medida em que o gelo acumulado desliza para o mar sob a força do próprio peso. Esse regime mantém a Antártida viva há 33 milhões de anos, às vezes mais esbelta, às vezes mais rechonchuda, mas atualmente os termômetros globais estão em alta, e o continente corre o risco de ficar definitivamente anoréxico. Vastas massas estão se desprendendo do manto de gelo e despencando no oceano –um espetáculo tão grandioso quanto assustador.

Ninguém acha que um degelo total possa acontecer num futuro previsível. No entanto, uma porção da Antártida –a ocidental– tem concentrado a perda de gelo. Ela é também a região que mais esquentou. Apesar de conter a menor parte do gelo do continente, seu derretimento tem o potencial de elevar o nível global do oceano em cinco metros, uma cifra muito maior do que os 59 centímetros previstos pelo IPCC (o painel do clima das Nações Unidas) até o fim deste século.

A maior parte das perdas ocorre na superfície, na forma de enormes rios congelados que deslizam dos pontos mais altos para os mais baixos do continente. Chamadas de geleiras e correntes de gelo, essas torrentes glaciais aos poucos escoam até o mar e algumas transformam-se em grandes plataformas flutuantes. Em 2002, uma dessas plataformas, a Larsen B, na península Antártica, desintegrou-se diante dos olhos dos cientistas no intervalo de um mês, criando icebergs duas vezes maiores que o município de São Paulo. Várias outras, na mesma região, estão diminuindo de tamanho ou já estão rachadas de maneira comprometedora, como a Wilkins –cuja foto ilustra a abertura desta reportagem.

O colapso da Antártida Ocidental pode também ocorrer de baixo para cima. Como grande parte do manto nessa região repousa abaixo do nível do mar, o aquecimento do oceano Austral pode acelerar o esfacelamento do manto da mesma forma como está induzindo a quebra das plataformas flutuantes.

Mas o gelo não precisa nem derreter para inundar o mundo, como diz a geofísica americana Robin Bell, da Universidade Columbia. Existe a possibilidade de o manto se descolar das rochas que o sustentam e cair no mar. Esse tombo faria o nível dos oceanos subir, assim como a água de um copo sobe quando se joga um cubo de gelo nela. Na Antártida Oriental, a crosta de gelo ergue-se sobre rocha, e esse alicerce tem um relevo, com um intricado e recém-descoberto sistema de rios e lagos de água líquida, que podem servir como “lubrificante" e facilitar o escorregão do manto.

Como foi parar ali?

A Antártida é um monstro complexo. Por isso, não é simples responder às duas perguntas mais importantes que essas descobertas colocam à frente dos cientistas e da humanidade inteira. A primeira é como essa água líquida foi parar lá embaixo, e a segunda, se o aquecimento global pode aumentar o volume de líquido e acelerar o desastre. Não existe uma resposta definitiva, até porque a Antártida vem sendo estudada há pouco tempo. Só no ano passado, por exemplo, ficou pronto o primeiro levantamento completo de todas as suas geleiras, realizado pelo francês Eric Rignot, da Nasa, no qual também se calculou com mais precisão a taxa de perda de gelo no continente. Neste momento, o balanço é negativo: em 2006, a quantidade de água que saía pelas geleiras excedia em 196 bilhões de toneladas o que se acumulava no manto na forma de neve (veja infográfico à esq.).

Os pontos de desequilíbrio são relativamente poucos: combinando dados de vários tipos, coletados entre 1992 e 2006, o cientista avalia que as geleiras mais deficitárias estão na fronteira do mar de Amundsen com o mar de Bellingshausen. Só entre 1996 e 2006, as saídas de gelo nessa zona cresceram 59%. Esses mares estão na Antártida Ocidental, porção do continente que mais esquentou nos últimos 50 anos. Do lado oposto, na Antártida Oriental, o déficit é quase zero. Isso se deve, provavelmente, ao fato de a massa de gelo ali ser muito profunda, com uma espessura bem superior a 1,8 km (a média do continente), e, segundo o glaciologista Jefferson Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ter uma temperatura infernalmente baixa, da ordem de -60º C. “Nessa escala, o aquecimento global pode não ter um grande efeito", diz. O que parece certo, segundo ele, é que o aumento da temperatura está afetando a Antártida de forma nunca suspeitada.

As medidas e o mapeamento de Rignot constituem um avanço no desbravamento do mais desconhecido dos continentes da Terra. As margens de erro dessas medidas são ainda quase inacreditáveis: o déficit do lado oriental da Antártida, avaliado em 4 bilhões de toneladas, pode ter 61 bilhões de toneladas para mais ou para menos. Ainda assim, o esforço de Rignot acrescentou uma informação crucial para compreender o movimento das massas geladas e para determinar com mais precisão o risco de um derretimento catastrófico. A velocidade de deslizamento foi um dos dados básicos que o cientista utilizou para medir a perda de massa das geleiras, e essa velocidade pode muito bem aumentar dependendo do atrito entre as rochas e a base do manto de gelo.

Em 2007, o IPCC apontou uma perda de gelo na Antártida a partir de 1993, mas não conseguiu estimar qual seria a contribuição dos mantos polares (tanto da Antártida quanto da Groenlândia) para o aumento do nível do mar no futuro, justamente devido à complexidade do seu funcionamento. Essa foi a grande questão a que os cientistas tentaram responder durante este Quarto Ano Polar Internacional. Uma pesquisa da francesa Anny Cazenave, do Centro de Estudos Espaciais de Toulouse, na França, apresentada no mês passado, mostra que o degelo respondeu por 80% da elevação observada no nível do mar, de acordo com medições feitas por satélites entre 2003 e 2008. No começo do século, ele respondia apenas por 40%.

Os estudos de Cazenave engrossam o coro dos que acham que o IPCC foi modesto demais em sua previsão e de que a elevação do oceano no final deste século deve ser próxima de 1,5 metro.

Bell acredita que a água no fundo da massa de gelo pode muito bem aumentar a velocidade de escorregamento. Ela diz que já se conhecem mais de 160 lagos na Antártida, e que seu volume de água, somado, equivale a 30% do volume de todos os lagos superficiais do planeta. Não se sabe como essa água se liquefaz. A primeira sugestão, ainda sendo investigada, seria o calor do próprio interior da Terra, que escapa por toda a superfície do planeta. Sob o polo Sul, esse fluxo pode ficar preso pelo gelo, que é um bom isolante térmico, e derreter a água. Outra hipótese é de que o peso da calota faria enorme pressão sob a sua base, e isso também pode provocar derretimento.

Segundo Bell, por um tempo pensou-se que os lagos fossem inertes, lacrados sob quilômetros de gelo, mas a pesquisa revelou que eles são tudo, menos habitantes passivos do continente: volta e meia, por algum motivo, um deles libera uma torrente de água subglacial, que despenca pelos vales e montanhas soterradas. E podem encher um outro lago que esteja no caminho ou desembocar no mar. É certo que esses vazamentos provocam erosões profundas nas rochas, já que, por toda a costa, conta Bell, se veem voçorocas abertas pelas enxurradas súbitas e violentas. Quanto à massa de gelo acima, nem é preciso violência: só o fato de haver um líquido na sua base pode ser suficiente para facilitar os escorregões. Quantificar o efeito desses lagos sobre o movimento das massas polares, para ela, é uma tarefa urgente.


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