São Paulo, quinta, 1 de janeiro de 1998.




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CONGRESSO
Ordem econômica e financeira sofreu várias alterações; reforma da Previdência deve ser aprovada este ano
Constituição de 88 recebeu 23 emendas

LUÍS COSTA PINTO
enviado especial a Brasília

Quem a vê de longe, largada em empoeiradas prateleiras, ou dela ouve falar dia sim outro também nas rádios e TVs, deve achar que a Constituição de 88 é como uma velha senhora alquebrada e desfigurada pelos remendos que o tempo a obrigaram a fazer para tentar se manter moderna -na crista da onda. Não é bem assim.
Com pouco mais de nove anos de idade, um "bebê jurídico" se comparada à Constituição de 211 anos dos Estados Unidos, a Constituição brasileira promulgada em outubro de 88 passou por pouquíssimas modificações e tem dispositivos que a põem numa espécie de vanguarda constitucional.
Apesar de todo o afã reformista de caráter liberal que se abateu sobre ela sob o governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ex-constituinte de 87-88, quando era um dos luminares da retórica de esquerda dentro da Assembléia Nacional Constituinte, o conjunto de leis promulgadas há quase dez anos só recebeu 23 emendas. Seis delas durante a mal sucedida revisão constitucional de 93, prevista para ocorrer pelos constituintes -a fim de que pudesse ser reescrita e modernizada por um processo legislativo simples- e sabotada pelo governo do então presidente Itamar Franco.
Essas 23 emendas acrescentaram 30 dispositivos à Constituição e dela retiraram apenas quatro. Outros 74 artigos, parágrafos, incisos e alíneas foram modificados. O título 8 da Carta Constitucional, que reúne o conjunto de normas da ordem social e foi responsável pelo apelido de "Constituição cidadã" dado a ela pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente da última Constituinte morto num acidente aéreo em 92, não mudou nada.
Mudanças econômicas
Já o seu vizinho título 7, cujos enunciados tratam da ordem econômica e financeira nacionais, virou do avesso. Os constituintes, muitas vezes liderados por discursos dos então senadores Fernando Henrique e Mário Covas (governador paulista), deram à Carta uma redação nacionalista, estatizante e medrosa em relação à influência de empresas e capitais estrangeiros no processo constituinte. Nos últimos três anos, como presidente da República, FHC tem cuidado para que sua base parlamentar no Congresso modifique tudo isso.
Foi sob o seu jugo, por exemplo, que se mudou o conceito de empresa brasileira. Antes eram aquelas constituídas exclusivamente por capital nacional, agora não importa a origem do capital desde que essas empresas tenham sede no Brasil e sejam administradas de acordo com as leis brasileiras. A alteração permitiu que multinacionais se instalassem no país para executar ou financiar prospecção, pesquisa e lavra de minérios -antes restritas às empresas brasileiras e estas, por definição, só tinham participação de capital nacional.
Também se abriu o mercado de navegação de cabotagem (operação de navios, turísticos ou mercantes) para estrangeiros, assim como se permitiu que empresas privadas brasileiras ou estrangeiras atuassem na pesquisa, exploração, prospecção e distribuição de petróleo e gás canalizado. Abriu-se até o mercado de telecomunicações, antes setor cuja atuação era privativa às estatais federais, à exploração comercial privada.
Críticas do ex-ministro
Há um cidadão que se ocupa com rara dedicação a acompanhar as modificações pelas quais passa a Constituição, ora por dever de ofício, ora pelo prazer de assistir a velhos adversários políticos como FHC e Covas maldizerem alguns dos dispositivos constitucionais para cujas defesas gastaram tantos verbos e adjetivos durante a Constituinte. Esse cidadão é o advogado Saulo Ramos, ministro da Justiça e consultor-geral da República durante a confecção da Carta.
"O destino transformou Covas e FHC em chefes de Executivo e os obrigou a liderar a reforma dos monstrinhos constitucionais que tanto defenderam. Entenderam que, com a Constituição por eles escrita, não poderiam governar", diz Ramos, um dos mais bem-sucedidos advogados do país quando o assunto é acionar o Supremo Tribunal Federal contra raciocínios ou vácuos legais da Carta.
Para ele, o furor reformista do governo deveria entrar por outros campos da Constituição e não apenas pela ordem econômica e financeira e Previdência Social e administração pública (cujas emendas reformistas o governo quer aprovar até março no Congresso). Ele considera fundamental uma profunda reformulação de alguns enunciados constitucionais que, na sua opinião, podem confundir os legisladores e embaçam até mesmo o que há de bom na Carta.
"A Constituição tem virtudes claras também: é democrática e editou o melhor elenco de direitos e garantias fundamentais de nossa história. Mas em alguns casos o texto chega a ser anedótico, como quando prevê o direito à não auto-incriminação e à inviolabilidade física só deferido a quem estiver preso... Isto provoca a triste hermenêutica da PM bater nos que estão em liberdade", teoriza Ramos.
Defesas do ex-relator
O senador Bernardo Cabral (PFL-AM), relator-geral da Constituição de 88 e ministro da Justiça (90-91) no governo de Fernando Collor, sai em defesa do texto que ajudou a consolidar e dar redação final. "É uma boa Constituição... A melhor que já tivemos. Saiu extensa e detalhista porque saíamos de uma ditadura e todos queriam ver seus direitos específicos inscritos na Constituição na esperança de não perdê-los na eventualidade de outra ditadura", acha ele.
Cabral votou contra as emendas propostas pelo governo que terminaram por quebrar os monopólios estatais do petróleo e das telecomunicações. Nas demais, votou a favor. Diz que votará contra o governo na proposição de quebra do princípio de estabilidade dos funcionários públicos, no âmbito da reforma administrativa. "O mundo pode ter mudado muito nesta década que se seguiu à falência do modelo socialista, mas considero essencial ao Estado manter em suas mãos o poder de administração de recursos como petróleo e telecomunicações, estratégicos, e ter uma burocracia estatal consolidada e perene", diz ele.
Nelson Jobim, hoje ministro do STF, ex-constituinte e uma espécie de sombra de Cabral na Comissão de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, relator da revisão que não deu em nada e ex-ministro da Justiça (95-97), diz que a Constituição pode e deve emagrecer mais e mais. Considera o capítulo dos direitos e garantias individuais o melhor e mais moderno do texto, mas enxerga necessidades urgentes de revisão.
"O Estado moderno precisa ser ágil para se adaptar às mudanças pelas quais passam o mundo e a sociedade. Tópica, específica, exagerada, a nossa Constituição muitas vezes confunde o legislador no lugar de ajudá-lo a explicar alguns problemas. Precisamos passar um pente fino na Constituição o mais rápido possível, deixá-la clara e torná-la uma carta de princípios e não um emaranhado de enunciados cujos artigos se remetem uns aos outros", crê Jobim.




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