São Paulo, quarta-feira, 01 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Democracia e conservadorismo

FRANCISCO WEFFORT
ESPECIAL PARA A FOLHA

A revolução democrática, que desde meados dos anos 90 vem criando um Estado regulador em cima do que sobrou do Estado produtor-corporativista criado pela Revolução de 1930, é um exemplo disso que alguns já chamaram de uma "revolução pelo alto". Um fenômeno da política mais do que da economia. Muda o país político, muda a relação do Estado com a economia, mas esta continua impondo as suas leis de ferro, sempre enquadrada nas regras (ou falta de regras) da economia internacional.
Houve uma época em que isso se entendia como a dependência do país em relação ao sistema econômico internacional. De algum tempo para cá, se chama a isso de globalização. De um modo ou de outro, o certo é que, em contraste com o surgimento de uma nova geração de líderes nos governos e nas oposições, permanece a concentração de capital e de renda e tem-se a impressão de que a desigualdade não diminui. Desde o Plano Real e a eleição de Fernando Henrique e, mais ainda agora, com a eleição de Lula, ocorrem mudanças políticas que seriam consideradas insuportáveis há 15 ou 20 anos. Como a primeira, a de 1930, a segunda revolução democrática brasileira tem também o seu conservadorismo. Aliás, talvez não fosse, nem mesmo hoje, suportável se não tivesse seu lado conservador.

Acalmar o Mercado
"Continuidade sem continuísmo" -o slogan de Serra interpreta a passagem de Fernando Henrique a Lula melhor do que o "Lulinha paz e amor", o slogan do Lula sob a influência do Duda Mendonça. Mas ambos refletem a mesma ambiguidade da democracia brasileira. Se mantivesse as promessas de ruptura econômica que marcaram historicamente a imagem do PT e, em parte pelo menos, a campanha eleitoral, Lula não diria "paz e amor" e não se elegeria presidente.
Na campanha de 2002, como já ocorrera em 1994, Lula teve de se aproximar bastante das teses de Fernando Henrique. (Querem uma interpretação sumária da "utopia possível" de Fernando Henrique? Utopia é o que deseja a vontade democrática, "possível" é o que a economia permite.) E, mesmo mantendo algumas "utopias" da época em que o PT era um movimento de crítica social, herdou de Fernando Henrique uma sensibilidade para perceber o que a economia permite ao Estado. E, junto com ela, alguns compromissos econômicos de Estado, desses que parecem irremovíveis no tempo normal de um governo.
Como todos sabemos, era este o sentido das conversações, no fim da campanha, entre os candidatos, inclusive Lula, e as autoridades monetárias, nacionais e internacionais. Não se trata apenas do FMI e de sua onipotência. Na opinião pública, ninguém quer voltar aos tempos de antes do Real, ninguém quer repetir os exemplos da Argentina ou da Venezuela. Menos ainda o da Colômbia, com a sua guerra interminável, se é que esta foi um exemplo algum dia. Por seu lado, Cuba ficou como a Itabira de Drummond, apenas um retrato na parede. Daí que a palavra de ordem era -e continua sendo- "acalmar o mercado". E a nomeação de Meirelles, ex-presidente do BankBoston, para o Banco Central, indica que aquelas conversações eram para valer. Significam mais do que acalmar os jogadores das Bolsas. Significam também tornar aceitável para o lado conservador da sociedade a revolução democrática que Fernando Henrique representou ontem e que Lula representa hoje.
Embora mantendo algumas bandeiras sociais, a mudança de rumos econômicos que Lula vinha anunciando ao longo de sua carreira parece ter sido deixada para depois. "Governaremos em 2003 com o Orçamento do Fernando Henrique", dizia o líder João Paulo quando foram anunciados os resultados. E o ministro Antonio Palocci anunciou que a rota dos objetivos estratégicos, tais como previamente definidos, não poderá ser tomada senão daqui a dois anos ou mais.
Recusando o continuísmo político (ou seja, renovando os nomes na administração), os líderes do PT deixaram entrever em numerosas declarações que ficarão com a continuidade econômica.

Mudanças dentro da ordem
Formado como sindicalista, Lula aprendeu a falar com o mercado. Mais, talvez, do que com o sistema político, como se percebe agora na composição do ministério, que tem poucos nomes de outros partidos, além do próprio PT. "O Brasil mudou, o PT mudou, eu mudei", disse Lula. Poderia ser de outro modo? Realmente, todos mudaram. Assim como Fernando Henrique e o Brasil mudaram em 1994, também Lula e o Brasil mudaram em 2002, inclusive as associações empresariais e os sindicatos. Acertando na constatação das mudanças, só faltou a Lula dizer que elas ocorreram, inclusive a dele, no período de Fernando Henrique. Eles não são "farinha do mesmo saco", como diria algum furibundo esquerdista. Mas são, os dois, expressão de um mesmo processo histórico.
Na passagem do século 19 para o 20, quando o tema da revolução era ainda uma referência do pensamento europeu, liberais e socialistas italianos chamaram de "transformismo" as políticas que buscavam mudanças a partir do Estado. Ou seja, mudanças "dentro da ordem": "É preciso mudar para que tudo permaneça como está". A idéia central era a de antecipar-se a uma transformação que ameaçava vir de baixo.
O Brasil criou, nas preliminares da nossa primeira revolução democrática, a de 1930, a sua própria versão do "transformismo": "Façamos a revolução antes que o povo a faça". A frase de um prócer das oligarquias dissidentes daquela época continua sendo a divisa da revolução democrática dos dias atuais.
Eu me pergunto se transformações da época atual, como a expansão do processo de reforma agrária ou a criação do Ministério da Defesa, retirando as instituições militares da linha de frente do Estado, teriam sido possíveis sem a cobertura de Fernando Henrique e de sua base partidária no Congresso. O mesmo raciocínio vale para o PT: "Se não fosse o PT, o Brasil já teria se transformado em uma Colômbia", diz Lula. Uma referência que, diga-se de passagem, evoca a imagem do caos, mais do que a da transformação da ordem que as esquerdas de outras épocas enalteciam.
A novidade da revolução democrática que vivemos não está nos slogans, mas nos seus porta-vozes. Herança inesperada do regime autoritário que quando terminou, em 1985, havia servido, entre outras coisas, para deslegitimar as lideranças de direita no país. Quem senão as lideranças emergentes da esquerda para levar adiante, no Estado, as novas tarefas da economia? No "transformismo" europeu, a direita dava um passo à esquerda. No brasileiro, a esquerda dá um passo (ou mais de um) à direita. Na linguagem da esquerda de outros tempos, tratava-se de "administrar a crise do capitalismo", mesmo desejando um dia poder mudá-lo.
A velha esquerda talvez esteja realmente morta, mas, reconheça-se, pelo menos em homenagem à história, que ela já discutiu tudo isso há muitas décadas, quando se dividiu entre social-democratas e revolucionários. Hoje, depois da queda do Muro de Berlim, não há mais revolucionários. A grande questão é: o que significa o reformismo numa época em que a revolução já não é possível?

Novas conversões
Na Europa oriental, o capitalismo ressurgiu e a liderança política foi para as mãos de antigos comunistas. Estudiosos da democratização chamaram a isso de "conversão" das lideranças. No Brasil, com todas as suas diferenças, as "conversões" também existem e não são nada simples. Na Europa oriental, como resultado da derrota da URSS na Guerra Fria, aqui como imposição dos fatos da economia. Nos dois casos, mais do que por efeito de escolhas ideológicas de quem quer que seja, é a dura realidade da história que se impõe àqueles que imaginaríamos devessem dirigi-la.
Fernando Henrique, um grande intelectual de esquerda, uma vez no governo, teve de enfrentar várias crises financeiras internacionais e salvou dos escombros do corporativismo e do intervencionismo peças fundamentais da economia capitalista do país. Está sendo substituído por um importante líder sindical que, na oposição, falava em romper com o modelo que aí está. Será diferente com Lula?
As eleições de 1994 foram importantes porque nasceram do Plano Real, um plano de estabilização monetária que, surpreendentemente, assumiu, já nos primeiros dias de sua aplicação, uma notável significação social. Iniciava-se a desmontagem do velho Estado herdado dos anos 30, com a perspectiva de uma mudança da economia que haveria de atender também às demandas sociais. Isso também ocorreu em certas áreas da economia, como a das telecomunicações.
Mas embora não tenha ficado impedido de realizar avanços consideráveis na educação e na saúde, assim como na ampliação das redes de solidariedade social, todos sabemos que Fernando Henrique governou, no primeiro e no segundo mandato, dentro das estreitas margens que lhe concedia a economia com as suas sucessivas crises internacionais.
As eleições de 2002 foram o fato eleitoral mais importante da história da democracia brasileira, não apenas porque foram, em geral, limpas, e com a participação de mais de 100 milhões de eleitores, mas porque a maioria preferiu um líder de origem operária num país de grandes maiorias de pobres tradicionalmente educados para eleger os de cima. Se a "conversão" do líder intelectual surpreendeu, que dizer da eventual "conversão" do líder operário? Neste ponto está a maior complicação e a maior novidade das eleições de 2002. Até há um ano ou dois, quando Fernando era governo e Lula era oposição, a coreografia parecia clara.
Na coreografia das aparências criadas pela retórica política, Fernando Henrique e Malan, ambos intelectuais de esquerda, apareciam "administrando o capitalismo", aliás com mão de ferro, e Lula prometia "romper com o modelo". De Palocci, que se tornou o Malan do Lula, só se falava como o afável e eficiente (igualzinho ao Malan) administrador de Ribeirão Preto, uma cidade rica de São Paulo, a Califórnia brasileira. Agora sabemos que a "conversão" de Palocci, que segundo dizem, já foi trotskista, vem de há mais tempo. Dessa coreografia de sombras, nasce o maior equívoco e a maior surpresa de 2002.
Como ninguém via como mudar o tal modelo e, ao mesmo tempo, ninguém podia imaginar que Lula pudesse se "converter", parecia claro que Lula estava condenado a perder. É certo que não apenas Lula, também Ciro e Garotinho, até mesmo Serra, apresentaram restrições ao modelo.
Numa eleição em que todos os candidatos vinham da esquerda, os grandes objetivos declarados nos comícios eram consensuais: juros mais baixos, mais crescimento, mais mercado interno, mais emprego, desconcentração da renda, diminuição da desigualdade social etc. Tais objetivos são de todos, como Hélio Jaguaribe se encarregou de demonstrar reunindo vezes seguidas líderes de todos os partidos para definir um programa consensual para o Brasil.
Venceu o candidato que todos acreditavam destinado a perder. E quando se pensava que perderia por causa do seu curriculum, demasiado social para as exigências econômicas da hora atual, foi por causa disso mesmo que ganhou. Se era para mudar o modelo, que outro candidato teria mais crédito do que Lula? Mas há uma segunda razão para a vitória. É que, como em 1994, na própria campanha foi-se insinuando a ambiguidade da "continuidade sem continuísmo". Lula não venceu apenas porque é de origem popular e vem, há anos, criticando o atual modelo. Venceu também porque deu sinais bastante claros de que a mudança de modelo deve ficar para depois.
Lula enfrentará a partir de 2003 o mesmo problema vivido por Fernando Henrique e seu governo depois de 1995. Qual o modelo alternativo? Na verdade, mais do que dos presidentes, o problema é do país: não queremos voltar para trás e não conseguimos vislumbrar qual o nosso caminho à frente. Crítica recente dos líderes do PT a Fernando Henrique dizem que seu governo teve um déficit de pensamento estratégico ("um grande apagão estratégico"). Talvez. Mas o problema agora é do Lula. Qual é esta estratégia que os líderes do PT, mesmo antes de chegar ao governo, jogam num horizonte futuro que talvez não se atinja nunca. Quem leu um pouco dos velhos livros sabe que ou a estratégia está embutida na tática ou não é estratégia, mas simples veleidade ideológica. Esteja claro que estratégia é algo que não se resolve com frases retóricas sobre a vontade política nem menos ainda sobre o consenso já existente sobre o que acreditamos melhor para o Brasil.
Para Fernando Henrique, com ampla maioria no Congresso, era a hora do pragmatismo. Colocar a ideologia entre parênteses, responder da melhor maneira possível aos problemas imediatos. Reformar o Estado, racionalizar, privatizar, moralizar o uso do gasto público. No esforço para atingir estes objetivos, o discurso tradicional da esquerda silenciou.
Como será para Lula? Sem maioria no Congresso, qual será a estratégia? Será talvez a de restabelecer a mobilização da sociedade, ou das massas, a partir do Executivo? Fernando Henrique foi um governo que, somando com o Congresso, evitou tanto quanto possível a mobilização da sociedade e das massas. Nisto consistia, essencialmente, o seu "apagão estratégico": governar sem mobilizar ou mobilizando o mínimo possível. Se o "clarão estratégico" vier a consistir em governar com apoio na mobilização, sempre vale a pena olhar para os ensinamentos do passado, em especial para as tristes experiências de Jânio e Jango. A mobilização, no Brasil, faz governos. Mas com ela não se governa. A insistência pode levar à crise a democracia que todos queremos preservar.


FRANCISCO CORREA WEFFORT, 65, ministro da Cultura de 1995 a 2002, é professor titular aposentado de ciência política da Universidade de São Paulo. É autor de "A Cultura e as Revoluções da Modernização" (2000), "Um Olhar sobre a Cultura Brasileira" (1998), "Qual Democracia?" (1992), "Democracia como proposta" (1991), "O Populismo na Política Brasileira" (1978).


Texto Anterior: Perfil/Lula: ABC do negociador
Próximo Texto: Saiba mais: Fundador do PT, Weffort deixou partido em 1994
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.