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ARTIGO
Democracia e conservadorismo
FRANCISCO WEFFORT
ESPECIAL PARA A FOLHA
A revolução democrática, que
desde meados dos anos 90 vem
criando um Estado regulador em
cima do que sobrou do Estado
produtor-corporativista criado
pela Revolução de 1930, é um
exemplo disso que alguns já chamaram de uma "revolução pelo
alto". Um fenômeno da política
mais do que da economia. Muda
o país político, muda a relação do
Estado com a economia, mas esta
continua impondo as suas leis de
ferro, sempre enquadrada nas regras (ou falta de regras) da economia internacional.
Houve uma época em que isso
se entendia como a dependência
do país em relação ao sistema econômico internacional. De algum
tempo para cá, se chama a isso de
globalização. De um modo ou de
outro, o certo é que, em contraste
com o surgimento de uma nova
geração de líderes nos governos e
nas oposições, permanece a concentração de capital e de renda e
tem-se a impressão de que a desigualdade não diminui. Desde o
Plano Real e a eleição de Fernando Henrique e, mais ainda agora,
com a eleição de Lula, ocorrem
mudanças políticas que seriam
consideradas insuportáveis há 15
ou 20 anos. Como a primeira, a de
1930, a segunda revolução democrática brasileira tem também o
seu conservadorismo. Aliás, talvez não fosse, nem mesmo hoje,
suportável se não tivesse seu lado
conservador.
Acalmar o Mercado
"Continuidade sem continuísmo" -o slogan de Serra interpreta a passagem de Fernando Henrique a Lula melhor do que o "Lulinha paz e amor", o slogan do Lula sob a influência do Duda Mendonça. Mas ambos refletem a
mesma ambiguidade da democracia brasileira. Se mantivesse as
promessas de ruptura econômica
que marcaram historicamente a
imagem do PT e, em parte pelo
menos, a campanha eleitoral, Lula
não diria "paz e amor" e não se
elegeria presidente.
Na campanha de 2002, como já
ocorrera em 1994, Lula teve de se
aproximar bastante das teses de
Fernando Henrique. (Querem
uma interpretação sumária da
"utopia possível" de Fernando
Henrique? Utopia é o que deseja a
vontade democrática, "possível" é
o que a economia permite.) E,
mesmo mantendo algumas "utopias" da época em que o PT era
um movimento de crítica social,
herdou de Fernando Henrique
uma sensibilidade para perceber
o que a economia permite ao Estado. E, junto com ela, alguns
compromissos econômicos de
Estado, desses que parecem irremovíveis no tempo normal de um
governo.
Como todos sabemos, era este o
sentido das conversações, no fim
da campanha, entre os candidatos, inclusive Lula, e as autoridades monetárias, nacionais e internacionais. Não se trata apenas do
FMI e de sua onipotência. Na opinião pública, ninguém quer voltar
aos tempos de antes do Real, ninguém quer repetir os exemplos da
Argentina ou da Venezuela. Menos ainda o da Colômbia, com a
sua guerra interminável, se é que
esta foi um exemplo algum dia.
Por seu lado, Cuba ficou como a
Itabira de Drummond, apenas
um retrato na parede. Daí que a
palavra de ordem era -e continua sendo- "acalmar o mercado". E a nomeação de Meirelles,
ex-presidente do BankBoston,
para o Banco Central, indica que
aquelas conversações eram para
valer. Significam mais do que
acalmar os jogadores das Bolsas.
Significam também tornar aceitável para o lado conservador da sociedade a revolução democrática
que Fernando Henrique representou ontem e que Lula representa hoje.
Embora mantendo algumas
bandeiras sociais, a mudança de
rumos econômicos que Lula vinha anunciando ao longo de sua
carreira parece ter sido deixada
para depois. "Governaremos em
2003 com o Orçamento do Fernando Henrique", dizia o líder
João Paulo quando foram anunciados os resultados. E o ministro
Antonio Palocci anunciou que a
rota dos objetivos estratégicos,
tais como previamente definidos,
não poderá ser tomada senão daqui a dois anos ou mais.
Recusando o continuísmo político (ou seja, renovando os nomes
na administração), os líderes do
PT deixaram entrever em numerosas declarações que ficarão com
a continuidade econômica.
Mudanças dentro da ordem
Formado como sindicalista, Lula aprendeu a falar com o mercado. Mais, talvez, do que com o sistema político, como se percebe
agora na composição do ministério, que tem poucos nomes de outros partidos, além do próprio PT.
"O Brasil mudou, o PT mudou, eu
mudei", disse Lula. Poderia ser de
outro modo? Realmente, todos
mudaram. Assim como Fernando
Henrique e o Brasil mudaram em
1994, também Lula e o Brasil mudaram em 2002, inclusive as associações empresariais e os sindicatos. Acertando na constatação das
mudanças, só faltou a Lula dizer
que elas ocorreram, inclusive a
dele, no período de Fernando
Henrique. Eles não são "farinha
do mesmo saco", como diria algum furibundo esquerdista. Mas
são, os dois, expressão de um
mesmo processo histórico.
Na passagem do século 19 para
o 20, quando o tema da revolução
era ainda uma referência do pensamento europeu, liberais e socialistas italianos chamaram de
"transformismo" as políticas que
buscavam mudanças a partir do
Estado. Ou seja, mudanças "dentro da ordem": "É preciso mudar
para que tudo permaneça como
está". A idéia central era a de antecipar-se a uma transformação
que ameaçava vir de baixo.
O Brasil criou, nas preliminares
da nossa primeira revolução democrática, a de 1930, a sua própria
versão do "transformismo": "Façamos a revolução antes que o povo a faça". A frase de um prócer
das oligarquias dissidentes daquela época continua sendo a divisa da revolução democrática
dos dias atuais.
Eu me pergunto se transformações da época atual, como a expansão do processo de reforma
agrária ou a criação do Ministério
da Defesa, retirando as instituições militares da linha de frente
do Estado, teriam sido possíveis
sem a cobertura de Fernando
Henrique e de sua base partidária
no Congresso. O mesmo raciocínio vale para o PT: "Se não fosse o
PT, o Brasil já teria se transformado em uma Colômbia", diz Lula.
Uma referência que, diga-se de
passagem, evoca a imagem do
caos, mais do que a da transformação da ordem que as esquerdas de outras épocas enalteciam.
A novidade da revolução democrática que vivemos não está nos
slogans, mas nos seus porta-vozes. Herança inesperada do regime autoritário que quando terminou, em 1985, havia servido, entre
outras coisas, para deslegitimar as
lideranças de direita no país.
Quem senão as lideranças emergentes da esquerda para levar
adiante, no Estado, as novas tarefas da economia? No "transformismo" europeu, a direita dava
um passo à esquerda. No brasileiro, a esquerda dá um passo (ou
mais de um) à direita. Na linguagem da esquerda de outros tempos, tratava-se de "administrar a
crise do capitalismo", mesmo desejando um dia poder mudá-lo.
A velha esquerda talvez esteja
realmente morta, mas, reconheça-se, pelo menos em homenagem à história, que ela já discutiu
tudo isso há muitas décadas,
quando se dividiu entre social-democratas e revolucionários. Hoje,
depois da queda do Muro de Berlim, não há mais revolucionários.
A grande questão é: o que significa o reformismo numa época em
que a revolução já não é possível?
Novas conversões
Na Europa oriental, o capitalismo ressurgiu e a liderança política
foi para as mãos de antigos comunistas. Estudiosos da democratização chamaram a isso de "conversão" das lideranças. No Brasil,
com todas as suas diferenças, as
"conversões" também existem e
não são nada simples. Na Europa
oriental, como resultado da derrota da URSS na Guerra Fria, aqui
como imposição dos fatos da economia. Nos dois casos, mais do
que por efeito de escolhas ideológicas de quem quer que seja, é a
dura realidade da história que se
impõe àqueles que imaginaríamos devessem dirigi-la.
Fernando Henrique, um grande
intelectual de esquerda, uma vez
no governo, teve de enfrentar várias crises financeiras internacionais e salvou dos escombros do
corporativismo e do intervencionismo peças fundamentais da
economia capitalista do país. Está
sendo substituído por um importante líder sindical que, na oposição, falava em romper com o modelo que aí está. Será diferente
com Lula?
As eleições de 1994 foram importantes porque nasceram do
Plano Real, um plano de estabilização monetária que, surpreendentemente, assumiu, já nos primeiros dias de sua aplicação, uma
notável significação social. Iniciava-se a desmontagem do velho
Estado herdado dos anos 30, com
a perspectiva de uma mudança da
economia que haveria de atender
também às demandas sociais. Isso também ocorreu em certas
áreas da economia, como a das telecomunicações.
Mas embora não tenha ficado
impedido de realizar avanços
consideráveis na educação e na
saúde, assim como na ampliação
das redes de solidariedade social,
todos sabemos que Fernando
Henrique governou, no primeiro
e no segundo mandato, dentro
das estreitas margens que lhe concedia a economia com as suas sucessivas crises internacionais.
As eleições de 2002 foram o fato
eleitoral mais importante da história da democracia brasileira,
não apenas porque foram, em geral, limpas, e com a participação
de mais de 100 milhões de eleitores, mas porque a maioria preferiu um líder de origem operária
num país de grandes maiorias de
pobres tradicionalmente educados para eleger os de cima. Se a
"conversão" do líder intelectual
surpreendeu, que dizer da eventual "conversão" do líder operário? Neste ponto está a maior
complicação e a maior novidade
das eleições de 2002. Até há um
ano ou dois, quando Fernando
era governo e Lula era oposição, a
coreografia parecia clara.
Na coreografia das aparências
criadas pela retórica política, Fernando Henrique e Malan, ambos
intelectuais de esquerda, apareciam "administrando o capitalismo", aliás com mão de ferro, e Lula prometia "romper com o modelo". De Palocci, que se tornou o
Malan do Lula, só se falava como
o afável e eficiente (igualzinho ao
Malan) administrador de Ribeirão Preto, uma cidade rica de São
Paulo, a Califórnia brasileira.
Agora sabemos que a "conversão" de Palocci, que segundo dizem, já foi trotskista, vem de há
mais tempo. Dessa coreografia de
sombras, nasce o maior equívoco
e a maior surpresa de 2002.
Como ninguém via como mudar o tal modelo e, ao mesmo
tempo, ninguém podia imaginar
que Lula pudesse se "converter",
parecia claro que Lula estava condenado a perder. É certo que não
apenas Lula, também Ciro e Garotinho, até mesmo Serra, apresentaram restrições ao modelo.
Numa eleição em que todos os
candidatos vinham da esquerda,
os grandes objetivos declarados
nos comícios eram consensuais:
juros mais baixos, mais crescimento, mais mercado interno,
mais emprego, desconcentração
da renda, diminuição da desigualdade social etc. Tais objetivos são
de todos, como Hélio Jaguaribe se
encarregou de demonstrar reunindo vezes seguidas líderes de
todos os partidos para definir um
programa consensual para o Brasil.
Venceu o candidato que todos
acreditavam destinado a perder. E
quando se pensava que perderia
por causa do seu curriculum, demasiado social para as exigências
econômicas da hora atual, foi por
causa disso mesmo que ganhou.
Se era para mudar o modelo, que
outro candidato teria mais crédito
do que Lula? Mas há uma segunda
razão para a vitória. É que, como
em 1994, na própria campanha
foi-se insinuando a ambiguidade
da "continuidade sem continuísmo". Lula não venceu apenas porque é de origem popular e vem, há
anos, criticando o atual modelo.
Venceu também porque deu sinais bastante claros de que a mudança de modelo deve ficar para
depois.
Lula enfrentará a partir de 2003
o mesmo problema vivido por
Fernando Henrique e seu governo depois de 1995. Qual o modelo
alternativo? Na verdade, mais do
que dos presidentes, o problema é
do país: não queremos voltar para
trás e não conseguimos vislumbrar qual o nosso caminho à frente. Crítica recente dos líderes do
PT a Fernando Henrique dizem
que seu governo teve um déficit
de pensamento estratégico ("um
grande apagão estratégico"). Talvez. Mas o problema agora é do
Lula. Qual é esta estratégia que os
líderes do PT, mesmo antes de
chegar ao governo, jogam num
horizonte futuro que talvez não se
atinja nunca. Quem leu um pouco
dos velhos livros sabe que ou a estratégia está embutida na tática ou
não é estratégia, mas simples veleidade ideológica. Esteja claro
que estratégia é algo que não se resolve com frases retóricas sobre a
vontade política nem menos ainda sobre o consenso já existente
sobre o que acreditamos melhor
para o Brasil.
Para Fernando Henrique, com
ampla maioria no Congresso, era
a hora do pragmatismo. Colocar a
ideologia entre parênteses, responder da melhor maneira possível aos problemas imediatos. Reformar o Estado, racionalizar, privatizar, moralizar o uso do gasto
público. No esforço para atingir
estes objetivos, o discurso tradicional da esquerda silenciou.
Como será para Lula? Sem
maioria no Congresso, qual será a
estratégia? Será talvez a de restabelecer a mobilização da sociedade, ou das massas, a partir do Executivo? Fernando Henrique foi
um governo que, somando com o
Congresso, evitou tanto quanto
possível a mobilização da sociedade e das massas. Nisto consistia, essencialmente, o seu "apagão
estratégico": governar sem mobilizar ou mobilizando o mínimo
possível. Se o "clarão estratégico"
vier a consistir em governar com
apoio na mobilização, sempre vale a pena olhar para os ensinamentos do passado, em especial
para as tristes experiências de Jânio e Jango. A mobilização, no
Brasil, faz governos. Mas com ela
não se governa. A insistência pode levar à crise a democracia que
todos queremos preservar.
FRANCISCO CORREA WEFFORT, 65,
ministro da Cultura de 1995 a 2002, é
professor titular aposentado de ciência
política da Universidade de São Paulo. É
autor de "A Cultura e as Revoluções da
Modernização" (2000), "Um Olhar sobre
a Cultura Brasileira" (1998), "Qual Democracia?" (1992), "Democracia como proposta" (1991), "O Populismo na Política
Brasileira" (1978).
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