São Paulo, domingo, 01 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Quem dera ter carne todo dia", diz moradora

DA SUCURSAL DO RIO

Gente que antes tinha emprego e salários fixos e agora sobrevive, em parte, com a mandioca e o milho que planta no quintal. Que antes conseguia abastecer a dispensa para o mês todo e hoje depende de uma cesta básica que, às vezes, "alguém" dá. Que antes comia carne todo o dia e agora só quando "sobra um qualquer".
Esse é o cenário que a Folha encontrou na pobre localidade de Exponing, uma invasão no bairro da Posse (Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio), onde vivem cerca 90 famílias.
Em abril deste ano, a Folha esteve local, para retratar as condições de vida na Baixada Fluminense, palco da chacina de 29 pessoas, supostamente mortas pela polícia em Nova Iguaçu e Queimados.
De lá para cá, nada mudou. O lugar que caracteriza o empobrecimento das metrópoles mais parece uma roça de antigamente, mas está a menos de 5 km da via Dutra, lotada de supermercados, restaurantes e shoppings centers utilizados pela classe média da Baixada Fluminense.
Lá, vive sozinha Teresinha de Jesus Passos, 65. Ela conta que nos últimos dez anos sua vida só piorou. "Olha, graças a Deus, faltar comida não falta, mas carne todo o dia, quem dera. Quando eu era caixa numa loja em Nova Iguaçu vivia melhor. Depois, fiquei desempregada um tempão, deixei de pagar a Previdência e hoje só recebo R$ 300 por mês. É tudo o que ganho. Não tenho essa coisa de Bolsa-Família. Ninguém me dá nada. Só de vez em quando uma cesta básica, um remédio no posto e olha lá."
Sua casa tem uma TV "velhinha, quase pifando", um celular pré-pago que ganhou da filha, geladeira e fogão. Acesso a serviços públicos eles também têm: "A água é da rua". E a luz? "É miau", disse falando baixinho. "Quando me dizem que a Light vai cortar eu respondo: e daí, aqui é miau [gato, ligação irregular]", completa.
Para o remédio do coração -Teresinha é cardíaca-, o dinheiro não dá. "Tem um tempão que não tomo. Só quando tem no posto, mas sempre está em falta."
Sua filha Rosana de Jesus Passos, 43, mora dois barracos adiante, com o marido e dois filhos. Recebe R$ 65 do Bolsa-Família e vende "umas balas e uns doces" na porta da sua casa, que lhe rende "mais uns R$ 40" por mês. "Tinha também o vale-gás, que dava R$ 15 por mês, mas no começo deste ano eles cortaram", disse.
Os dois filhos de Rosana -Cristiano, 6, e Cristiane, 19- estão na escola. "A garota faz uns bicos de vez em quando." Rosana diz que também faz "umas faxinas", mas dinheiro para procurar emprego fixo ela não tem nem para o ônibus. "Conseguir emprego aí pra baixo [zona Sul do Rio] é muito difícil. Precisa ter indicação e pra pegar um ônibus daqui pra Central [do Brasil, terminal de ônibus e trens no centro do Rio] custa R$ 3. Se pagar isso, não sobra todo dia", disse.
Situação semelhante vive Márcia Helena Dias da Cruz, 40. Ela trabalhava numa empresa de ônibus até adoecer -ela sofre de erisipela e problemas circulatórios nas pernas- e está há mais de um ano afastada. Recebe R$ 300 do INSS. "E graças ao bom Deus que tenho esse benefício."
Trabalho assistencial é algo esporádico na região. "Vez por outra vem alguém de uma igreja e dá uma cesta básica. Mas neste ano [em 2005] está bem fraco. Não peguei nenhuma. Só um pessoal veio aqui dar uns brinquedos para as crianças". Márcia sustenta os três filhos com a pensão.
A única assistência regular que há na região é da Pastoral da Criança, que acompanha peso e medida das crianças, dá suplemento alimentar para mães e filhos e uma refeição no dia da pesagem mensal, relatam as mulheres. Diversão, diz, é só ver a TV de 14 polegadas, comprada em prestações quando ainda não estava afastada do emprego.
Vizinho delas, o pedreiro Ubiratan Teixeira, planta milho, mandioca, mamão, banana, couve e outras hortaliças no pequeno quintal. "É para quando falta dinheiro, assim ainda dá pra segurar um pouco. Quando tem biscate dá pra tirar uns R$ 500, se pegar um trabalho bom." Ele diz ainda que doa aos vizinhos a produção da sua roça nos meses nos quais consegue um "bom dinheiro".
O milho e mandioca também servem para alimentar os dois cachorros que ele mantêm presos no quintal. "Pra mim pode até faltar, mas pra eles tem sempre uma carcaça de frango ou angu".


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Gastos públicos: "Custo político" come receita de municípios
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.