São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Rede de procuradoria dá margem a "pagamentos inexistentes" e "anulações indevidas de débitos"

Senhas são usadas para cancelar dívidas

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A rede de computadores da Procuradoria da Fazenda Nacional tornou-se um portal aberto à fraude. O maior escritório do órgão, localizado em São Paulo, coleciona indícios de violações ao sistema que armazena os registros da Dívida Ativa da União.
O Frigorífico Margen Ltda., por exemplo, figurava no cadastro eletrônico da dívida ativa com dois débitos: R$ 1.520.172,46 e R$ 473.976,16. Um total de R$ 1.994.148,62.
A dívida, que se encontrava em fase de cobrança judicial, sumiu. Lançamentos feitos em 3 de abril de 2001 nos computadores da Procuradoria da Fazenda registram que o tributo teria sido pago.
Porém, um outro sistema informatizado do governo (Sinal), no qual a Receita Federal anota os recebimentos de tributos, informa que os cofres do Tesouro não viram a cor do dinheiro do Frigorífico Margen.
A Controladoria Geral da União, órgão de auditagem vinculado à Presidência, inspecionou a operação. Em relatório de 19 de setembro do ano passado, os auditores informam que os supostos pagamentos constituem uma "fraude".
Em 25 de setembro de 2002, o advogado da empresa, Francisco Giannini Neto, requereu à Justiça a "extinção" do processo de cobrança. Não apresentou guias de recolhimento dos tributos. Anexou ao pedido apenas os registros eletrônicos da Fazenda Nacional. Os mesmos cuja autenticidade está sendo agora contestada.
Baseando-se nos lançamentos supostamente fraudulentos realizados no cadastro da dívida ativa, procuradores da Fazenda Nacional requereram à Justiça, em petições de 20 de novembro e de 21 de novembro de 2002, a "extinção da execução fiscal" referente ao débito do Frigorífico Margen.
A Justiça procedeu à baixa das dívidas. O processo foi extinto com uma sentença de 21 de fevereiro do ano passado. A causa, como se costuma dizer em linguagem jurídica, transitou em julgado. Significa que a parte perdedora, no caso a União, não pode mais recorrer.
Para os auditores, a Procuradoria da Fazenda agiu com "imperícia". Antes de solicitar a extinção do processo contra o frigorífico, os procuradores deveriam ter consultado o banco de dados da Receita. A consulta lhes teria permitido verificar que os débitos continuavam em aberto.
"Estamos estudando a hipótese de propor uma ação rescisória", afirma a procuradora-chefe interina da Fazenda Nacional em São Paulo, Alice Vitória Fazendeiro Oliveira Leite.
Ouvido, o representante legal do Frigorífico Margen, José Adilson Melan, disse: "O assunto já foi esclarecido. Tratava-se de débito que já estava realmente pago." A reportagem pediu para ver os comprovantes de pagamento. Adilson Melan não quis mostrar. "A dívida não foi paga", rebate a procuradora-chefe Oliveira Leite.
Detectado com dois anos de atraso, o sumiço dos débitos do sistema da dívida ativa gerou uma sindicância. Inquiridos, servidores suspeitos alegaram que suas senhas de acesso aos computadores haviam sido utilizadas indevidamente por terceiros.
Esse tipo de alegação, cada vez mais freqüente nas apurações internas da Procuradoria da Fazenda, vem impedindo sistematicamente a punição de servidores sob suspeição.
No ano passado, abriu-se um processo administrativo para investigar fraudes contra o cadastro da dívida ativa. Incluíam o lançamento de "pagamentos inexistentes", "anulações indevidas de débitos" e emissão "irregular" de certidões negativas.
De novo, os funcionários colocados sob suspeita afirmaram que suas senhas haviam sido apropriadas por pessoas cuja identidade desconheciam.
O relatório final da investigação anota: "[...] não é possível estabelecer como prova de participação do servidor nestas fraudes [...] o fato de que elas ocorreram com a senha de determinado funcionário, apesar de que, como já colocado inúmeras vezes, dúvidas não restam de que as irregularidades foram praticadas por funcionário ou funcionários que aqui trabalham e ainda continuam a exercer as suas funções."

Mais investigação
Outra sindicância, realizada em 2002, chegou a resultado semelhante. Apurava-se o suposto cancelamento irregular de três inscrições em dívida ativa da ótica paulista Iguatemy Jetcolor Ltda.
Como de praxe, a funcionária cuja senha viabilizou o acesso fraudulento ao sistema de informática da Procuradoria Nacional negou participação no malfeito. As suspeitas recaíram sobre dois estagiários de direito a serviço da repartição: Elias Israel da Silva e Rodrigo Sampaio Lopes.
Insatisfeito com as conclusões, o então procurador-chefe da Fazenda Nacional em São Paulo, Fernando Hugo Albuquerque Guimarães, determinou o aprofundamento das apurações.
Em seu relatório final, a comissão de inquérito elogiou os estagiários. Defendeu-lhes a idoneidade. O que não impediu que ambos acabassem deixando os quadros da procuradoria.
Depois do desligamento, um dos estagiários, Rodrigo Sampaio Lopes, envolveu-se em um outro episódio suspeito, dessa vez na seccional da Procuradoria da Fazenda Nacional no município de Dourados (MS).
Foi acusado, de acordo com o relatório da Controladoria da União, de propor vantagens a um servidor, em troca de baixas de débitos inscritos em dívida ativa.
Depois, o mesmo estagiário Sampaio Lopes foi preso em Campinas, sob a acusação de integrar uma quadrilha que agia no aeroporto de Viracopos.
O documento da controladoria informa que uma investigação da Polícia Federal constatou que o grupo integrado pelo estagiário eliminava dos computadores da Receita dívidas de empresas de importação e exportação.

Outro lado
A Folha tentou ouvir os estagiários Israel da Silva e Sampaio Lopes, mas não conseguiu localizá-los. Tentou contatar também a Iguatemy Jetcolor. Em seus antigos pontos de venda funciona uma outra ótica, chamada Barcelona. Os funcionários informam que a Iguatemy fechou.
O escritório de contabilidade que atende à empresa supostamente inativa, embora informado sobre a natureza da reportagem, não deu resposta aos recados que foram deixados pelo repórter. (JOSIAS DE SOUZA)


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