São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

ROBERT BRENNER

Para historiador dos EUA, condução macroeconômica deve afastar investimentos produtivos de longo prazo

Política de Lula levará país à estagnação, diz professor

ÉRICA FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

As políticas macroeconômica e fiscal do governo Lula tendem a resultar em estagnação econômica pontuada por crises financeiras. Essa é a opinião do norte-americano Robert Brenner, um dos maiores historiadores econômicos de esquerda da atualidade.
Segundo Brenner, professor e diretor do Centro de Teoria Social e História Comparativa da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos EUA, os cortes de gastos do governo em infra-estrutura e a renda deprimida da população brasileira tendem a afastar investimentos produtivos de longo prazo no país.
O forte fluxo de capitais recebido por países em desenvolvimento, como o Brasil, é, segundo ele, fruto de uma bolha (valorização sem base em fundamentos).
Para ele, essa situação é de alto risco porque depende da manutenção "das taxas de juros mais baixas do pós-guerra" nos Estados Unidos, o que é improvável.
Leia a seguir a entrevista de Brenner à Folha.

 

Folha - Até que ponto os EUA se recuperaram da recessão de 2001?
Robert Brenner -
A vitalidade da recuperação norte-americana foi muito exagerada pela imprensa. Dada a dimensão historicamente inédita do estímulo governamental -taxas de juros de curto prazo perto de seu ponto mais baixo no pós-guerra, déficit federal atingindo os 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) e significativa desvalorização do dólar-, a expansão da economia foi fraca.
O crescimento anualizado de 8,2% no PIB no terceiro trimestre de 2003 parecia ser um sinal de que a economia havia decolado, depois de se manter estagnada no primeiro semestre. Mas a tendência era profundamente enganosa, já que a súbita aceleração resultou principalmente de fatores temporários, insustentáveis, como as imensas restituições de impostos e a liqüidação de investimentos em domicílios pelas famílias.
A economia entrou em recessão em 2001 como resultado do excesso de capacidade, que conduziu a uma forte queda da lucratividade em todo o setor industrial, bem como pelo efeito negativo que o "crash" das Bolsas teve sobre o patrimônio dos investidores.
Desde então, os empregadores conseguiram obter uma recuperação notável de sua lucratividade, quase que inteiramente por meio de um ataque pouco divulgado contra a classe trabalhadora. Cortaram acentuadamente o nível de emprego e intensificaram o ritmo de trabalho, de forma a compensar os cortes, conseguindo, assim, o que foi indevidamente classificado como um imenso ganho de produtividade. Também reprimiram o crescimento dos salários reais. Mas, como conseqüência, a economia privada vem gerando um crescimento muito baixo na demanda.

Folha - O senhor acredita que haja uma bolha nas Bolsas dos EUA?
Brenner -
Existem múltiplas bolhas nos mercados financeiros dos EUA. Na verdade, o crescimento da economia norte-americana nos últimos três anos dependeu delas, em larga medida.
Há, claramente, uma bolha nos mercados de ações, causada pela redução das taxas de juros de curto prazo pelo Federal Reserve [banco central dos EUA] a níveis jamais vistos desde 1958. A relação entre preço e lucro [P/E] das ações que integram o índice Standard & Poor's 500 [S&P 500] é de 30 para um. Esse número é mais de duas vezes superior à norma histórica e só foi superado em duas ocasiões no passado: durante o pico da bolha das ações, no final dos anos 90, e pouco antes do grande "crash" de 1929.
Há também uma bolha no mercado imobiliário, que viu os preços de habitação subindo em ritmo anualizado 5% a mais do que o índice de preços ao consumidor no período 1995-2003.
Há, por fim, o que poderia ser designado como uma bolha da conta corrente, ou do dólar. Graças ao enorme estímulo do governo, as importações norte-americanas continuam a superar as exportações à razão de 50% ao ano, o que levou a recordes de déficit em conta corrente tanto em 2002 como em 2003. Mas, dada a perda de atratividade dos ativos norte-americanos, os investidores privados estrangeiros estão mais relutantes em comprar ações do país, fazer investimentos diretos ou adquirir títulos do governo.
Se os EUA dependessem apenas de investidores privados para cobrir seu déficit externo, os juros teriam de subir substancialmente, o que estouraria a bolha no mercado de ações e de imóveis e poria fim à recuperação. O que impede esse resultado são as gigantescas aquisições de papéis do Tesouro e das agências norte-americanas pelos governos asiáticos. De acordo com o "Financial Times", entre o final de janeiro de 2002 e outubro de 2003 as reservas cambiais mundiais subiram US$ 831 bilhões e, desse total, US$ 611 bilhões foram acumulados pelos países asiáticos.

Folha - O Fed está perto ou longe de elevar as taxas de juros?
Brenner -
O Fed compreende perfeitamente que a recuperação econômica e a saúde dos mercados financeiros dos EUA dependem das bolhas nas Bolsas, no mercado de imóveis e na conta corrente e que, portanto, qualquer aumento significativo nos juros pode ser desastroso. Especialmente em razão da lentidão do mercado de trabalho é provável que o Fed evite qualquer elevação dos juros no futuro previsível.

Folha - A valorização dos ativos dos mercados emergentes, especialmente o de títulos públicos, começa a ser encarada com cautela. O senhor acredita que esses preços estão supervalorizados?
Brenner -
Parece evidente que há uma bolha nos mercados emergentes, especialmente no de títulos. Isso porque o imenso fluxo de capitais não pode ser explicado como resultado de qualquer mudança decisiva na economia dos países em desenvolvimento ou nas perspectivas internacionais.
Em vez disso, é preciso compreender esse fenômeno como reflexo da bolha no mercado de títulos norte-americano e da conseqüente busca de rendimentos mais elevados pelos investidores norte-americanos. Portanto, vem entrando muito dinheiro não só no mercado de títulos de dívida emergente como também no mercado de "junk bonds" (títulos de alto risco).
A situação lembra o entusiasmo inicial pelos mercados emergentes no começo dos anos 90, quando a queda nas taxas de juros e a desvalorização da moeda nos Estados Unidos, em um cenário de saída lenta da recessão, provocaram imenso fluxo de recursos para os países em desenvolvimento. A tendência encontrou um fim abrupto quando o Fed elevou as taxas de juros em 1994, gerando uma queda no mercado de títulos, e o dólar disparou em 1995, levando a uma maciça saída de recursos do Brasil e da América Latina principalmente.
A situação parece arriscada para a maior parte dos países em desenvolvimento porque, dada a ausência de controles de capital, eles não parecem ter grande capacidade para controlar as conseqüências. O fluxo de capital para os países em desenvolvimento já parece exibir limites naturais, porque a entrada de dinheiro já reduziu as diferenças entre as taxas de juros do centro e da periferia. Além disso, esse movimento depende da perpetuação de uma combinação de tendências quase sempre incompatíveis: a continuação da expansão econômica nos EUA e a manutenção dos juros mais baixos do pós-guerra.

Folha - Quais são as perspectivas da economia brasileira no contexto internacional?
Brenner -
O governo Lula continua a impor uma austeridade draconiana, com o objetivo de conquistar a confiança do FMI, dos investidores e dos credores internacionais, ostensivamente com o objetivo de atrair investimento estrangeiro de longo prazo. Mas é difícil imaginar como essa posição não resultará em estagnação econômica pontuada por crises financeiras, a um custo enorme para a grande maioria da população brasileira, como aconteceu durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Recorrendo especialmente a medidas de repressão da demanda interna por meio de uma das mais altas taxas de juros reais do mundo e do corte de gastos estatais em programas sociais e de infra-estrutura, o governo conseguiu em 2003 gerar um superávit comercial de US$ 24,8 bilhões, bem como um superávit primário de 4,31% do PIB, o que até excedeu os requisitos do FMI.
A verdade é que, devido às imensas obrigações externas herdadas da era FHC [1995-2002], mais de 70% desse superávit tem de ser dedicado ao serviço da dívida externa. Como o custo de captação doméstica foi elevado, os juros pagos pelo governo, na verdade, cresceram, apesar do imenso superávit primário. O fluxo de capitais de curto prazo aumentou, mas, com isso, a moeda se apreciou, o que tende a limitar as exportações. Nesse contexto, não é surpreendente que, em 2003, tanto o PIB como o PIB per capita tenham caído abaixo de zero, os salários reais, recuado 12,5%, e o desemprego urbano aberto, ficado em torno de 12%.
Com o poder aquisitivo reprimido e o baixo investimento governamental em infra-estrutura, educação e pesquisa e desenvolvimento, é difícil imaginar um motivo para que os capitalistas, nacionais ou internacionais, se envolvam em investimentos de prazo mais longo em fábricas, equipamentos e software. Eles não o fizeram sob o governo de FHC e não o farão sob o de Lula.
A idéia de que o influxo de capital de curto prazo para os emergentes pode ser sustentada por meio de políticas adotadas pelo país anfitrião, não importa quais sejam as condições financeiras vigentes nos países do centro, já foi provada falsa, repetidas vezes, durante a era do neoliberalismo, especialmente no Brasil. O declínio do risco-país brasileiro em 2003 foi muito alardeado, mas é duvidoso que reflita condições muito melhores para investimento no país ou, aliás, em qualquer outra nação em desenvolvimento. Afinal, declínios semelhantes foram registrados em quase todos os países emergentes. Além disso, o investimento estrangeiro direto no Brasil, na realidade, caiu à metade em 2003, em relação a 2002.



Texto Anterior: Regime militar: Especialistas darão início à busca por ossadas de guerrilheiros do Araguaia
Próximo Texto: Memória: Estouro de bolha em 2000 levou a recessão mundial
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.