São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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DOMINGUEIRA
As razões de Tinhorão

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
editor de Domingo

É uma delícia ler a edição revista e ampliada de "Música Popular - Um Tema em Debate", de José Ramos Tinhorão, personagem mitológico, que pautou debates sobre a MPB na década de 60. Tinhorão, "o Walter Benjamin da epifania fonográfica brasileira", como foi definido recentemente pelo sociólogo Gilberto Vasconcellos, é ao mesmo tempo o mais contestado e o mais respeitado estudioso da música brasileira.
As contestações devem-se às suas convicções, marcadas pelo nacionalismo marxista que fez época no país. Tinhorão tem predileção especial pelo conceito de alienação, defende ferrenhamente a pureza popular, tem horror ao uso de elementos culturais estrangeiros, especialmente norte-americanos, e acredita que a última instância da discussão cultural é política.
A polêmica mais conhecida gerada pelo autor foi em torno da bossa nova. Ele considerou desde início o movimento dos "rapazes de Copacabana", que se reuniam "no luxuoso apartamento da srta. Nara Leão", uma condenável diluição do samba com harmonização jazzística -modismo alienado de gente abastada ou americanófila.
Uma das passagens mais divertidas do livro comenta os apelidos americanizados de gente ligada ao movimento: Johny Alf, Dick Farney e... Tom Jobim. No caso de Tom, Tinhorão foi informado que o apelido nasceu em casa: o compositor era chamado pelas irmãs de Tom-tom. Mas o estudioso não se dá por vencido. Pergunta maliciosamente se o maestro usaria apelidos como Tonho ou Tonico, caso fossem escolhidos pelas irmãs...
Além do humor, há na intransigência de Tinhorão algumas fissuras de simpatia em relação aos grandes talentos, ainda que em sua alça de mira. Ele sabe perfeitamente, por exemplo, que João Gilberto trouxe uma contribuição realmente original, fundamental para fechar a equação bossanovista -e deixa entrever que o violão do músico baiano complica sua teoria sobre a mera estilização jazzística do samba.
A leitura do livro fora do contexto de polarização política e cultural de sua época ganha novos interesses. Primeiro, por permitir uma aproximação menos belicosa em relação aos argumentos do autor. Não é mais preciso brigar com Tinhorão. Ele perdeu. Seu projeto foi derrotado. Triunfou o internacionalismo, triunfou o mercado, o show-business, a abertura econômica.
E o fato de que tenha perdido é outro foco de interesse dessa leitura de trinta anos depois: em todo seu esquemático marxismo, em toda sua ranhetice nacionalista, em todo seu fundamentalismo populista,Tinhorão nos deixa hoje, à luz do projeto liberal triunfante, a impressão de que suas razões não eram tão desprezíveis assim.







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