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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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ENTREVISTA

Empresário, que integra Conselho de Lula e participou da transição, diz temer prolongamento da política de juros altos

Trevisan vê risco de novo "governo de moeda"


Nós estamos confundindo austeridade fiscal, que eu acho necessária, com elevação de juros. É o nosso pecado


MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Amigo (e eleitor) de Lula há quase duas décadas, o empresário e consultor Antoninho Marmo Trevisan, 53, participou da campanha presidencial, da equipe de transição de governo e hoje integra o Conselho de Desenvolvimento Social. Com quatro meses de governo do PT, ele vê a política de juros altos se prolongar mais do que gostaria e diz temer os riscos nela embutidos: "O risco é você se tornar um governo de moeda, e não do social".
Leia abaixo a entrevista:
 

Folha - O senhor já falou que o fato de os bancos terem algumas das melhores cabeças econômicas do país a seu serviço criou "verdades" difíceis de serem combatidas. É o que está acontecendo agora?
Antoninho Trevisan -
A política econômica concentrou fortemente a renda no sistema financeiro. E quem tem mais renda se aparelha melhor. Então a discussão no Brasil se situou no patamar de que a manutenção dos juros elevados se justifica por ser a grande âncora de um processo não-inflacionário. Economistas de bancos repetem isso todos os dias e geram uma verdade absoluta. Se eu me fixar nesse conceito, vou dizer que, por conta de combater a inflação, eu quebrarei todas as empresas do Brasil. Então você pergunta: e por que o Lula utiliza esse modelo? Eu posso lhe garantir: ele faz isso com uma espada atravessada no pescoço. Porque o Fernando Henrique caiu na mesma armadilha. Manteve essa política por longo período, elevou brutalmente a dívida interna do país, enfraqueceu as empresas e produziu um círculo vicioso. É um processo em que você não sai dele nunca. O governo Lula tem uma obrigação: estava escrito no programa do governo, nos princípios que me levaram a me apaixonar pelo programa do PT, que se perseguiria o desenvolvimento.

Folha - O senhor acha que o governo Lula vai sair desse processo? O que se percebe é que há uma ênfase no combate ao déficit público, mas quando se fala de política industrial e de desenvolvimento...
Trevisan -
...não tem nada. Mas é que foi uma questão de prioridade. O presidente Lula assumiu um governo com uma fragilidade enorme nas contas externas e internas, e com uma pressão inflacionária muito forte. Havia a aposta de que o novo governo iria tergiversar, e que com isso instalar-se-ia o caos. O que você faz? Radicaliza num primeiro momento. Não tem saída.

Folha - Mas há discussões internas no PT a respeito da necessidade de se radicalizar tanto.
Trevisan -
Exatamente. O problema é você não cair na armadilha. É por isso que eu adoro os xiitas do PT. Graças a Deus existem os xiitas do PT. Quando você passa a fazer parte do governo, a coisa mais comum é ficar encurralado por lobbies. Você começa também a se deslumbrar, porque é confundido com Deus. Então é preciso sempre chamar o ministro [da Fazenda] à realidade. Dizer: "pera" um pouquinho, você não pode passar o resto da vida fazendo um discurso de aumento de carga tributária, porque ela é excessiva. Você não pode fazer continuamente um discurso de manutenção de juros altos, porque no final todos estarão mortos.

Folha - O senhor acha que os juros já poderiam ter caído?
Trevisan -
O Banco Central deveria acelerar a queda dos juros. Na medida em que a mantenho elevada, eu faço crescer a dívida interna. Estou gerando um círculo vicioso, que foi a armadilha em que o Fernando Henrique caiu.

Folha - Há risco de o presidente Lula se enredar nessa armadilha?
Trevisan -
O risco é você se tornar um governo de moeda, e não do social. Quando você dá toda a ênfase à política monetária, e o gestor da economia é o gestor da política monetária, há uma tendência de aquilo se tornar o âmago da questão. Isso aconteceu com o [ex-ministro da Fazenda" Pedro Malan. Você submete qualquer outra política a esta do governo de moeda.

Folha - Isso está acontecendo?
Trevisan -
Estamos correndo o risco, caso fique sistematizada essa política de juros. Porque aí você se transforma num rei.

Folha - Quem?
Trevisan -
O condutor dessa política. O ministro da Fazenda. Não pode. Ele tem que se concentrar na sua função. Gestão de política social quem faz é ministro da área social. Gestão de política de cultura é o ministro da Cultura, de educação, o ministro da Educação.

Folha - Mas o Antonio Palocci Filho está entrando em programas sociais.
Trevisan -
Nós temos que estar alertas para isso. Isso não é bom.

Folha - O senhor defende que se baixem os juros mesmo que haja certos riscos?
Trevisan -
Eu prefiro correr esse risco positivo. Eu acho que a ênfase do governo está muito exagerada na política monetária e na política de juros. A radicalização foi necessária, mas se esse modelo persistir, vai começar a causar problemas gravíssimos para o país. A sociedade já não tem mais dúvida de para que esse governo veio, para que o PT veio. A credibilidade externa aumentou, o presidente detém a confiança do mundo, é visto como um estadista, com um índice de popularidade jamais alcançado. Agora tem o direito de ousar.

Folha - Ousar como?
Trevisan -
Quando falo isso, não defendo atitudes irresponsáveis. É na questão mesmo dos juros. Nós estamos confundindo austeridade fiscal, que eu acho necessária, com elevação de juros. É o nosso pecado, achar que temos um único instrumento, a política monetária. Sabe por quê? Porque nós já vimos esse filme antes. Eu, como torcedor desse governo, tudo o que quero é que ele dê certo.

Folha - Mas os juros altos estão atraindo recursos externos, o que faz com que o dólar caia e, em consequência, a inflação.
Trevisan -
Quando atrai recursos externos por conta de juros elevados, você só atrai o dinheiro pirata, que vai e vem com a mesma velocidade. Eu acho muito perigoso. Os recursos serão atraídos no momento em que você apresentar um programa consistente, voltado para infra-estrutura; na medida em que você, urgentemente, colocar em prática uma política industrial que defina claramente quais as regiões, os programas e os produtos que vão estar sendo desenvolvidos. Eu vejo com muita expectativa a apresentação desse plano estratégico que está sendo gestado pelo ministro Luiz Gushiken. Estamos com apenas quatro meses de governo e a situação era dramática. Entendo que, por mais que você queira desenvolver todas as áreas, tem uma que acaba tomando a preocupação maior do governo.

Folha - É verdade que, nas discussões da transição, o senhor chegou a afirmar que, diante do conservadorismo das propostas, era melhor deixar o Malan na Fazenda?
Trevisan -
Eu fiz uma brincadeira com o time que estava apresentando o Orçamento, o Marcos Lisboa [atual secretário de Política Econômica] e o Bernard Appy [atual secretário-executivo do Ministério da Fazenda]. O Orçamento demonstrava uma postura extremamente rígida em relação ao aumento do superávit. Isso retira dos outros ministérios a criatividade em ousar nas suas soluções.

Folha - O senhor achou os cortes exagerados?
Trevisan -
Exatamente. É claro que, quando você está partilhando de um novo governo, você quer ver mudanças. E é claro que essas mudanças são esperadas por todo mundo que votou e elegeu o presidente Lula. Quando você vê que a ênfase está de novo numa política monetária, você fica preocupado. Então, eu fiquei preocupado. Eles disseram: Trevisan, fique tranquilo que isso é apenas o começo.

Folha - E o senhor está tranquilo agora?
Trevisan -
Olha, eu nunca vou ficar tranquilo, porque eu aprendi uma coisa: governo reage sob pressão. Eu já fui governo. Nenhum governo reage por boa vontade.

Folha - Quem também não está tranquila é a economista Maria da Conceição Tavares. Ela diz que o recente documento lançado pelo Ministério da Fazenda, que diz que o gargalo da economia é o déficit fiscal, e não o externo, vai contra o diagnóstico de todos os grandes economistas.
Trevisan -
Eu concordo. Ambos são fundamentais. Só que o déficit fiscal nos deixa doentes. A fragilidade externa nos mata.

Folha - O senhor, como auditor, lida com números de diversas empresas. Como elas estão?
Trevisan -
Isso é importantíssimo: uma das coisas nas quais o governo está lento, e precisa ousar, é no mercado de capitais. Temos um problema: como financiar o investimento das empresas privadas. Ora bolas: se você tomar 1% do FGTS para o mercado de capitais, promoverá uma das maiores revoluções nesse ambiente. É só permitir que as pessoas usem seu FGTS para comprar ações de empresas que estão abrindo capital ou aumentando capital para investimento.

Folha - Por que o governo não faz isso?
Trevisan -
Isso daí é que está me incomodando. Eu coordenei o grupo de mercado de capitais na campanha eleitoral. O ministro Palocci esteve na Bolsa de Valores há um mês. Isso está pronto e já poderia estar sendo aplicado, independentemente da política econômica, percebe? Nós não podemos paralisar as ações por conta de que nós temos que operar a política econômica. Eu tenho muito respeito pelo ministro Palocci, mas não basta você ser um tesoureiro no governo, e dizer não. É preciso dizer não e ao mesmo tempo indicar caminhos. Existe essa vontade no governo e sei que qualquer governo leva um tempo para se ajustar. Mas todo mundo é exigente com o governo do Partido dos Trabalhadores. Até eu.

Folha - E com o presidente, o senhor fala essas coisas?
Trevisan -
Eu falo, sim. O presidente Lula é uma das pessoas mais capazes de processar informação que eu conheci na minha vida. Dada uma questão, ele processa de forma absolutamente criativa. Ele está aflito com o fato de ter que manter taxas de juros em patamar tão grande. Ele vai baixá-la o mais rápido possível, não tenho a menor dúvida disso.


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