São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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JANIO DE FREITAS

Abaixo a realidade

Entre o voto responsável e a concretização do seu propósito há quase o infinito.
Não é apesar disso que se deve votar, mas por isso: o voto responsável é o voto contra o infinito, contra o horizonte desejado, necessário, antevisto -e inalcançável, no entanto.
É pouco menos do que um lugar-comum dizer que o voto é o único instrumento legal de intervenção direta do cidadão na política e, portanto, nos rumos do país e das condições do viver em seu território. Além de único, oferece-se a intervalos largos, mesmo que não haja uma ditadura no meio do caminho. Escasso e único, ainda por cima o voto encontra dificuldades muito complicadas a superar, para que traduza as aspirações mais autênticas do votante.
Jornais, TVs, revistas, esse conjunto que leva o nome sem sentido de mídia, é portador unânime da crítica aos políticos, logo, aos eleitores que os mantêm políticos nos governos e nos Parlamentos. A mídia brasileira, porém, é a primeira daquelas dificuldades complicadas que se opõem ao voto autêntico, o que a põe como um dos fatores de maior responsabilidade para que a política e os governos sejam o que são.
Sem a informação frequente sobre o desempenho dos parlamentares, o eleitor não tem noção de quem é quem nas Câmaras Municipais, nas Assembléias Estaduais e no Congresso. E essa informação lhe é negada pela mídia, por desatenção ou comodismo. A Folha tem feito os cadernos "Olho no Congresso", registra no dia-a-dia o voto ou a omissão de cada congressista nos projetos de importância especial, mas sua prática é isolada. E, em certa medida, ainda em busca de aprimoramentos e de complementação.
A responsabilidade da mídia e as consequências de sua omissão ficaram bem demonstradas no recente episódio paulistano. De repente São Paulo (e o Brasil) constatou que sua Câmara Municipal era um ambiente putrefato. Mas os tantos que a fizeram assim poderiam perpetuar-se em sucessivas eleições, caso o paulistano fosse informado sobre sua Câmara por um acompanhamento jornalístico continuado? O voto popular, do eleitorado mais sem defesa contra a demagogia barata, asseguraria certas permanências. Mas também a ele acabam chegando as notícias que não leu, e não as deixa sem alguma dose de resposta.
Esta, pelo menos, é a regra geral. Incentivada pela repulsa muito maior, e justificada, daquele eleitorado à classe política, em comparação com as classes socioeconômicas que aparentam atitude mais crítica. Nas classes desfavorecidas, toda referência à política e aos políticos é mais do que pejorativa, é de desprezo e de ofensa. É para transpor tal barreira que se elaboram as manhas da demagogia especializada na exploração da necessidade e da desinformação.
A situação do eleitorado brasileiro é agravada pela inexistência de partidos, no sentido de representação política de um corpo de idéias e metas, excetuado só o PT. Aqui o eleitorado não se identifica com um partido, é isso ou aquilo -sempre ressalvada a exceção-, porque os partidos são apenas aglomerados de interesses individuais, grupos entre os quais os políticos se mudam segundo as mudanças de suas conveniências pessoais. Os programas são farsas que apenas cumprem uma formalidade legal, por sua vez reduzida a outra farsa. O eleitorado fica à mercê do que cada candidato diga, a título de princípios e de compromisso, e não dos objetivos representados por um partido. Daí a facilidade com que os compromissos eleitorais evaporam sob o sopro do cinismo mais cru.
Os políticos jamais cuidarão de alterar a dramática realidade da vida política no Brasil: são os seus beneficiários. Mas a realidade é mutável. Pelo voto. Mutável pelo menos no suficiente para que deixe de ser dramática e de transferir sua dramaticidade para a vida nacional. Mutável a começar do voto que hoje se dará, se esse voto for tão incomplacente e responsável quanto possível.


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