São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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ELIO GASPARI

O resgate do porão colonial

Chegou às livrarias o "Dicionário do Brasil Colonial", organizado pelo professor Ronaldo Vainfas. É uma das melhores notícias do ano. Para quem tem justo horror à palavra dicionário, um aviso: não tem nada a ver com os velhos pais-dos-burros. Trata-se de uma obra temática ao estilo do Dicionário da Revolução Francesa, de François Furet. Está organizada em verbetes, mas forma um conjunto harmônico. Cada verbete vem acompanhado de uma valiosa bibliografia.
É um grande livro por diversos motivos.
Primeiro, porque devolve ao país os personagens de um período de sua história mal ensinado, mal aprendido e mal conhecido. Isso apesar de dois dos maiores historiadores nacionais (Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda) terem-no tratado com acuidade e brilhantismo.
Segundo, porque a erudição de Vainfas permitiu-lhe narrar também a história da História. Em duas páginas, contando o que foram os bandeirantes, conta como se construiu o mito que transformou lavradores numa "raça de gigantes", quando não passaram de pobres caçando índios.
Terceiro porque, sem escorregar no facilitário do revanchismo dos oprimidos, trouxe o porão para o palco. Na letra "F" obrigou o rei Felipe 2º a conviver com Filipa de Souza, uma homossexual que desafiou a Inquisição no final dos Quinhentos. De uma página a d. Carlota Joaquina e uma e meia a Chica da Silva (que nada tem a ver com a figura fogueteira de Zezé Motta, visto que pariu 13 vezes em 17 anos de casamento). Com os documentos achados pelos pesquisadores da Inquisição, colocou no devido lugar a negra Rosa Egipcíaca, prostituta convertida à causa da moralidade que dirigiu um abrigo para mulheres antes de ter começado a ter visões, encrencando-se com o Santo Ofício.
Quem vier a sapear esse dicionário numa livraria pode conferir sua qualidade no verbete "Revoltas Antifiscais". A historiografia épica do andar de cima maquiou essas insurreições (ou apenas conspiratas) como se fossem projetos de autonomia nacional. Eram produto de um sentimento muito mais antigo: o horror a pagar impostos. Em 1661, no Rio houve a da Cachaça. Em 1711, na Bahia, a do Maneta. Poucos anos depois, às margens do São Francisco, deram-se os distúrbios que os portugueses chamaram de "Furores Sertanejos de Minas Gerais".
Num livro tão bom chega a ser uma malvadeza que lhe falte um índice onomástico, mas isso nada tem a ver com a qualidade do trabalho de Vainfas e de sua equipe.


Boa notícia

Não se sabe como, nem quando, mas o governo vai baixar a carga tributária dos remédios com o objetivo de reduzir e segurar seus preços.
O secretário da Receita, Everardo Maciel, está buscando os meios e as fórmulas.


Novas bases

É quase certo que o PT sairá da eleição de hoje como o partido que somou a maior quantidade de votos nas 26 capitais. Estima-se que seu patrimônio oscile entre 8 e 10 milhões de votos, contra pouco mais de um para o PSDB e algo como oito para o PFL.
Se o conjunto dos resultados lhe for favorável, o partido entrará numa fase municipalista. Sua direção pretende fazer o que nenhum similar conseguiu: municipalizar as propostas nacionais e divulgar nacionalmente seus sucessos locais.


Bico sábio

Bill Clinton e FFHH estão jogando uma interessante partida. Clinton tem um verdadeiro apreço pelo seu colega e, desde o aparecimento do fenômeno Hugo Chávez, na Venezuela, busca transformá-lo em contraponto à novidade.
Nada melhor para a diplomacia americana do que comparar uma figura acadêmica e cosmopolita a um coronel demagogo que atribui o neoliberalismo a satã.
Tanto Chávez quanto FFHH perceberam o jogo. O presidente venezuelano folclorizou o assunto, dizendo que FFHH e Fidel Castro são os seus grande ídolos (depois de Simon Bolívar).
Há pouco tempo, os EUA pediram a FFHH que se interessasse pelo processo de paz no Oriente Médio. O grão-tucano preferiu ficar de fora.


Por baixo

O governo nunca mais será o mesmo. Numa mesma semana, FFHH e Pedro Malan andaram de metrô. O ministro da Fazenda, para escapar da patuléia das manifestações que tomaram as ruas de Praga. O presidente, de surpresa, numa visita a São Paulo.
Sem segurança ou aparato, FFHH passou incólume. Descobriu que, enquanto os cidadãos mais velhos o chamam de "senhor", os jovens o tratam de "você".


Um novo tipo de voto: o "não-sou-bobo"

Millôr Fernandes já se perguntou por que há pessoas que se julgam maus jogadores de futebol, assim como há aqueles que se reconhecem como maus poetas, mas ninguém diz que é mau motorista. Em dia de eleição, é de alguma utilidade transpor esse paradoxo para a política. Todos os cidadãos julgam-se bons eleitores, mas ninguém explica direito por que votou num candidato que passou a detestar.
Por exemplo: 6 milhões de pessoas elegeram Jânio Quadros, mas depois de sua renúncia era difícil achar seis dos seus eleitores. Declararam-se enganados, deram-no por maluco e foram em frente. Na geração seguinte, 35 milhões de eleitores mandaram Fernando Collor para o Planalto e festejaram a sua queda.
Mais surpreendente foi a metamorfose ocorrida com o eleitorado de FFHH. Em outubro de 1998, com o dólar a R$ 1,20, ele foi reeleito, com 36 milhões de votos. Até as pedras sabiam que o populismo cambial estava levando o país à ruína. Seu adversário, Luiz Inácio Lula da Silva passou toda a campanha repetindo isso. Depois da desvalorização e da crise que ela provocou, a impopularidade de FFHH superou os índices mais altos impostos a Collor.
De uma maneira geral, o repúdio aos governantes é acompanhado por um forte preconceito contra os políticos. Coloca-se em funcionamento um mecanismo segundo o qual o eleitor se diz iludido, acusa o candidato em quem votou de enganador e considera quitada a conta. Há exatos quatro anos São Paulo elegeu Celso Pitta e hoje, num caso radical, nem dona Nicéa acha que votou direito.
Todo mundo vota no candidato que julga melhor. Dados os antecedentes, vai aqui uma proposta de reflexão para a fila da urna: qual candidato eu serei capaz de apoiar por quatro anos?


A piada é boa, mas cheira a lorota

Está circulando uma ótima piada do mundo diplomático: em 1976, visitando Brasília, o secretário de Estado Henry Kissinger percorreu os salões do Itamaraty em companhia do então chanceler Azeredo da Silveira. Impressionado com a arquitetura, disse ao seu anfitrião: "Belíssimo edifício, Antonio. Agora só falta vocês botarem uma política externa aqui dentro".
A menos que apareça alguma testemunha desse diálogo, trata-se de uma invenção, posterior à morte de Silveira.
Admitindo-se que o professor Kissinger arriscasse uma piada limítrofe com a grosseria, suas memórias desmentem a essência da frase. Nelas mostrou-se até mesmo um admirador da tenacidade de Silveira na defesa dos interesses de seu país, além de ter feito bela barretada à qualificação profissional dos diplomatas brasileiros. Fez isso ao tratar do início da guerra civil angolana, reconhecendo que fizera uma burrada, enquanto o governo brasileiro fizera o certo, adotando uma política própria.
Para ficar no campo das frases que nunca foram ditas, vale repetir mais uma vez que o general De Gaulle nunca disse que "o Brasil não é um país sério". O embaixador brasileiro em Paris à época (1962), Carlos Eduardo Alves de Souza, descreveu minuciosamente a criação dessa fantasia, mas a versão continua prevalecendo sobre o fato.


A Receita pode trombar com a CPI

A burocracia da Receita Federal está criando um clima de feijoada na Assembléia Legislativa de São Paulo, onde funciona uma CPI do narcotráfico. Sem que se saiba por que, um de seus inspetores, convidado a depor na comissão, lá não apareceu. Suspeita-se que tenha sido instruído para agir assim. Dois auditores, um dos quais no exercício da atividade de delegado sindical do aeroporto de Cumbica, compareceram, depuseram e agora teme-se que possam ser penalizados por isso.
Ambos faltaram ao serviço no dia em que depuseram. De acordo com as normas do serviço, são obrigados a explicar por que não foram trabalhar.
Resta saber se a Receita Federal considera ato lesivo à administração pública um dos seus funcionários faltar ao expediente porque foi depor numa CPI, especialmente a do narcotráfico.
Por enquanto, a única corporação que fica irritada com depoimentos desse tipo é a dos narcotraficantes.


ENTREVISTA

Raul Jungmann

(48 anos, ministro do Desenvolvimento Agrário)

O MST diz que o senhor é um negociador que não merece confiança. O senhor diz que a recíproca é verdadeira. Como é que se pode evitar a repetição de episódios grotescos como o da fazenda dos filhos do presidente? O senador Antonio Carlos Magalhães já propôs que ele fosse declarado ilegal. Essa carta está no seu baralho?
Você não pode declarar ilegal uma coisa que não existe. O MST não é uma pessoa jurídica. Não tem diretoria responsável pelos seus atos. Deixando as adjetivações de lado, temos que entender que a sociedade rejeita as invasões, mas quer a negociação. Houve um dia em que o marechal Costa e Silva ia receber uma comitiva na qual havia estudantes. Queriam barrá-los porque estavam sem gravata. Isso é que é grotesco. O governo recebe, dialoga, mas não é idiota. O MST precisa do conflito e o seu maior inimigo é o êxito. Nem digo o êxito do governo. Refiro-me ao sucesso do que eles dizem ser os seus objetivos. Já existe literatura acadêmica demonstrativa da tensão existente nos assentamentos. Os sem-terra querem terra. O MST quer a coletivização autoritária, coordenada por uma direção rotativa. Ele precisa satanizar o governo para justificar o encolhimento de sua base de apoio. A opinião pública começou a condicionar o apoio que lhe dá. O PT, com sua opção pela política, pelo voto, também vem guardando uma prudente distância diante de algumas de suas iniciativas. A igreja já lhes mostrou os limites de sua solidariedade. Ninguém pode ficar solidário, por exemplo, com a prática de irregularidades no uso de créditos oficiais. Eles pediam terra. Receberam terra. Pediram crédito, receberam crédito. Acharam-se casos de malversação dos recursos e eles responderam ameaçando incendiar fazendas.

José Rainha Júnior diz que essas auditorias são produto da perseguição.
Nessa atitude está embutida a noção segundo a qual o sem-terra tem que se transformar numa nova modalidade de agente econômico: o com-terra, com-crédito, sem-cobrança e sem-auditoria. De janeiro a agosto deram-se 189 invasões de terras, contra 250 ocupações de prédios públicos e obstruções de estradas. O projeto fundiário está sendo substituído por uma cesta de pleitos financeiros. Em pelo menos 80 casos, as manifestações do MST deram-se em bancos. O governo tem uma linha de crédito na qual o assentado recebe R$ 1.000 e paga R$ 611. No conjunto, já se rolaram R$ 800 milhões de dívidas de assentamentos. Fez-se isso porque era o certo, mas o que o MST propõe é a renegociação de todos os débitos. Não esqueça, renegociação de empréstimo fortemente subsidiado. Eles querem confundir dívida social com calote.

Isso não significa que a dívida social seja pequena.
É enorme e uma das grandes injustiças que se faz ao governo é não reconhecer o que ele tem feito nesse campo. Um assentado recebe sua terra e mais R$ 6.400 para se instalar. Desse dinheiro, só vai pagar R$ 1.850. O lote, financiado em 20 anos com três de carência, tem as prestações abatidas em 50% se os filhos do assentado estiverem na escola. Pode-se estimar que cada assentado recebe do governo algo como R$ 25 mil (em dinheiro e em terra). Disso, ele paga menos que a metade, em dez anos. Esse é um êxito da sociedade brasileira, mas se transformou num pesadelo para a direção do MST.


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