São Paulo, Segunda-feira, 01 de Novembro de 1999
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ENTREVISTA DA 2ª
"Herdeiro" de Betinho diz que governo "patina" na questão social

MARCELO BERABA
Diretor da Sucursal do Rio

Herbert de Souza, o Betinho, morto em 1997, tem um herdeiro: d. Mauro Morelli, 64, paulista de Avanhandava e bispo de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, desde 1981.
D. Mauro é o principal articulador do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar. Formado por cerca de 120 entidades, o Fórum começa a fazer parceria com vários governos estaduais para a elaboração de políticas públicas para a erradicação da pobreza e o combate à fome e desnutrição.
O Fórum é a continuação de dois outros movimentos organizados e liderados por Betinho e por d. Mauro: o Movimento pela Ética na Política, nascido no calor do processo de impeachment de Fernando Collor, em 1992, e a Campanha contra a Fome, que chegou a ter mais de 7.000 comitês espalhados pelo Brasil.
Nesta entrevista, concedida na sede da Diocese de Caxias, d. Mauro criticou a política econômica do governo.
"Já entramos num período bastante grave em que as pessoas, por causa do desemprego, entram num processo óbvio de empobrecimento e até de desespero", disse. Para d. Mauro, o governo Fernando Henrique está "patinando" na questão social.
Quanto à Igreja Católica, ele fez um "mea culpa" pelos erros cometidos pela ala mais politizada, à qual pertence. Chamou de "imaturo" e se disse chocado com declarações do padre Marcelo Rossi e criticou os métodos de ação da Renovação Carismática.

Folha - Em 1993, quando o Betinho iniciou a Campanha contra a Fome, um estudo do Ipea mostrava que o Brasil tinha 32 milhões de miseráveis. De lá para cá a situação melhorou?
D. Mauro -
Há um estudo do Ipea que mostra que há cerca de 85 milhões de pessoas no Brasil que tentam viver com dois salários mínimos. O que significa que não teriam condições de atender todas as suas necessidades básicas e, consequentemente, não teriam condições de se alimentar de forma adequada. De um lado temos uma redução no número de famintos, mas do outro temos um crescente empobrecimento que leva as pessoas, por tabela, a uma situação de desnutrição.
Por um certo momento nós sentimos uma melhora. Como o próprio presidente (Fernando Henrique Cardoso) se vangloriava, a população comia melhor. Mas eu acho que já entramos num período bastante grave em que as pessoas, por causa do desemprego, entram num processo óbvio de empobrecimento e até de desespero.
Caxias é um município em que circula muita riqueza, não é mais uma cidade-dormitório. Mas aqui você também encontra bolsões terríveis de inanição e fome. As favelas que temos aqui em volta são chocantes. Há muita gente passando fome.

Folha - Qual a diferença do Fórum de Segurança Alimentar que o sr. coordena para a Campanha contra a Fome, da qual também participou?
D. Mauro -
A campanha do Betinho surgiu numa avaliação final da luta contra a corrupção que levou ao impeachment de Collor. Naquele instante, o Movimento pela Ética na Política concluiu que o pior tipo de corrupção que havia no Brasil, e continua havendo, é o modelo econômico que faz com que em um país como o nosso o trabalho não seja valorizado e a natureza seja degradada, o que provoca tanta exclusão social e um quadro de fome.
A convicção que nós temos é que os governos em geral não fazem administrações que interessam ao povo. Os governos não governam, os partidos políticos não formulam projetos mais globais e não conseguem catalisar a energia do povo. É preciso desenvolver novas formas de participação política e de poder político.
A ação da cidadania deve ser a principal marca dessa luta pela transformação do Brasil. E nós acentuávamos na época a solidariedade, a descentralização e a parceria e o pluralismo. Como era uma ação de cidadania, ela explodiu. Era um sentimento de humanidade e de indignação que se transformou numa energia que chegou a juntar mais de 7.000 comitês pelo Brasil.
Naquele momento nós tivemos a ousadia de fazer uma parceria com o presidente (Itamar Franco). Sentamos para discutir políticas públicas e ajudamos a acompanhar de forma crítica. Isso foi inédito. Foi uma experiência que terminou com a extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) no governo Fernando Henrique, em 10 de janeiro de 1995. Essa parceria foi muito importante para um governo de transição difícil como foi o governo de Itamar. Sem essa parceria, o governo (Fernando Henrique) ficou patinando.

Folha - Por que essa parceria não continuou?
D. Mauro -
Porque eles não quiseram. O novo presidente na época entendeu que tinha outros objetivos. Nós atribuímos à Ação da Cidadania o mérito de ter colocado na agenda política, como questão prioritária, o combate à fome e à exclusão.

Folha - A Comunidade Solidária não é uma continuação dos programas do Consea?
D. Mauro -
O Comunidade Solidária não foi feito para colocar como objetivo estratégico do governo o combate à fome. O objetivo estratégico do governo era a estabilização da moeda. O Consea seria conflitante com o cerne de toda a política do governo.

Folha - E o que é o Fórum?
D. Mauro -
O nosso movimento é um movimento político. Nas eleições do ano passado, decidimos procurar os governadores que tinham nas suas plataformas uma visão crítica do modelo econômico. Entendíamos que deveríamos cobrar, propor e fazer parceria com os governos que diziam que era preciso mudar o rumo do desenvolvimento.
A segurança alimentar passa pela ocupação da terra, pela distribuição e comercialização dos alimentos, abastecimento, controle de qualidade. Esse é um eixo. Outro é o que se refere à educação e nutrição. A meta do governo é não aceitar a desnutrição.

Folha - E o Fórum também está voltado para ações emergenciais?
D. Mauro -
No dia em que o Brasil tiver segurança alimentar, não vai precisar de cestas. Mas nós entendemos, desde a época do Betinho, que fome se combate com comida. Criança é criança agora. Até os seis anos de idade, ela atravessa um período decisivo de desenvolvimento. Fome e desnutrição nesse período significam não atingir o desenvolvimento humano a que tem direito, significa o risco de lesão cerebral. É evidente que para isso você precisa ter programas emergenciais. Defendemos a distribuição de alimentos, mas com o fortalecimento das organizações comunitárias, com uma visão de cidadania.
No caso da desnutrição infantil, é óbvio que só o poder público não vai resolver. Tem de ter um movimento de solidariedade. Quem no Brasil tem efetivamente conseguido combater a desnutrição é a Pastoral da Criança. Só no Estado de Minas ela tem 13 mil agentes voluntários.

Folha - Quais são os Estados que estão hoje comprometidos com as propostas do Fórum?
D. Mauro -
O primeiro, por razões óbvias, foi Minas, por causa do presidente Itamar, que já tinha sido parceiro no Consea e se elegeu com um discurso crítico ao governo. Num encontro em Belo Horizonte (dias 18 e 19) tivemos gente do Amapá, Amazonas, Acre, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio, Minas e Alagoas. Inclusive representantes dos governos.

Folha - O governo federal acaba de lançar mais um projeto de combate à pobreza, o Comunidade Ativa, que tem proposta semelhante à do Fórum na medida em que propõe substituir o assistencialismo por programas de desenvolvimento definidos pelas comunidades.
D. Mauro -
Eu não me entusiasmo com esses projetos. São bons, são importantes. Mas, se a gente continuar obedecendo a critérios que fazem com que 41% do Orçamento real para o ano 2000 seja destinado para pagar as dívidas e os serviços das dívidas, é óbvio que não vai resolver o problema da fome. Sem medidas no campo do Legislativo, sem medidas que priorizem a democratização da terra, educação, capacitação para o trabalho, criação de empregos, distribuição de renda, não vamos resolver nada.

Folha - Se o presidente Fernando Henrique o convidasse para participar do governo, como fez o presidente Itamar Franco, o sr. participaria?
D. Mauro -
Eles não iriam convidar. Ele dispensou o Consea em 1995 e é um homem muito coerente, pelo menos era. O programa Comunidade Solidária é um programa secundário. O eixo da ação do governo sempre foi atrelar o Brasil à ordem econômica internacional acreditando que esse é o caminho. Eu discordo.
Acho que não temos nenhum plano de desenvolvimento para o país até hoje. E nós atrelamos a nossa navezinha brasileira a uma nave-mãe espacial que já estava à deriva havia muito tempo e que agora ela mesma, por meio de alguns de seus instrumentos de operação, como o Fundo Monetário Internacional, reconheceu que os que seguiram as suas diretrizes se deram mal.
Para uma parceria hoje com o governo federal nós temos que entrar no cerne da questão. Nós queremos discutir qual é o rumo do desenvolvimento do país. O resto vem depois.

Folha - Da mesma maneira que o país vem mudando muito ao longo desta década, a Igreja Católica também mudou. Nós assistimos nesse período, por exemplo, ao enfraquecimento da Teologia da Libertação e ao crescimento da Renovação Carismática. O que mudou na igreja? Ela está hoje mais ou menos sensível às questões sociais?
D. Mauro -
Eu não diria que a igreja não está sensível. Talvez a resposta que ela busque dar traga mais consolação do que cidadania. Essa é que é uma questão séria. Nós estamos vivendo movimentos de massa, com conteúdos, com expressões, com propostas que a mim não me convencem. Primeiro, porque parece que estamos entrando numa disfarçada cruzada.

Folha - O sr. se refere exatamente a quê?
D. Mauro -
Eu me refiro, por exemplo, a um evento como o que nós tivemos outro dia no Maracanã (12 de outubro). Refiro-me à valorização de um método de trabalho de alguns padres ainda bastante jovens e que se revelam imaturos. Eu, por exemplo, achei chocante a declaração do padre Marcelo Rossi em que dizia que procura mudar a imagem do padre porque essa imagem é do padre efeminado, mulherengo e alcoólatra. O padre brasileiro não é isso. Isso revela um desconhecimento do que os padres estão vivendo por este país afora, o empenho de transformação social. Eu fiquei surpreso e chocado com essa declaração porque foi extremamente ofensiva. Qual é a imagem que ele está passando? É de um padre que canta. Alguns que vi cantando cantam mal, inclusive. Como atores também não me comoveram.

Folha - Mas eles estão atraindo uma multidão que a igreja não atrai há muito tempo.
D. Mauro -
Em verdade, a igreja sempre, em qualquer tempo, viveu duas realidades. A participação efetiva na comunidade eclesial no Brasil nunca foi mais de 10%. Mas em certos momentos você sempre soube atrair multidões. Como num Congresso Eucarístico. Nós, da chamada -eu não gosto da palavra, mas enfim- igreja empenhada na transformação social, acho que de fato descuidamos um pouco do trabalho com a massa. A gente deixou isso de lado, e acho que foi um erro bastante grave.
Mas a proposta agora não me convence. No fundo, procura-se trabalhar para reagir à invasão das seitas. Uma coisa é a Renovação Carismática como uma manifestação desse pluralismo da igreja, como uma oportunidade para as pessoas aprofundarem um pouco mais a experiência de fé. É um caminho para quem aprecia esse método. Agora, você transformar a Renovação num instrumento de conquista, eu pessoalmente acho que não é por aí.


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