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ENTREVISTA DA 2ª
"Herdeiro" de
Betinho diz que
governo "patina"
na questão social
MARCELO BERABA
Diretor da Sucursal do Rio
Herbert de Souza, o Betinho,
morto em 1997, tem um herdeiro:
d. Mauro Morelli, 64, paulista de
Avanhandava e bispo de Duque
de Caxias, na Baixada Fluminense, desde 1981.
D. Mauro é o principal articulador do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar. Formado por
cerca de 120 entidades, o Fórum
começa a fazer parceria com vários governos estaduais para a elaboração de políticas públicas para
a erradicação da pobreza e o combate à fome e desnutrição.
O Fórum é a continuação de
dois outros movimentos organizados e liderados por Betinho e
por d. Mauro: o Movimento pela
Ética na Política, nascido no calor
do processo de impeachment de
Fernando Collor, em 1992, e a
Campanha contra a Fome, que
chegou a ter mais de 7.000 comitês espalhados pelo Brasil.
Nesta entrevista, concedida na
sede da Diocese de Caxias, d.
Mauro criticou a política econômica do governo.
"Já entramos num período bastante grave em que as pessoas, por
causa do desemprego, entram
num processo óbvio de empobrecimento e até de desespero", disse. Para d. Mauro, o governo Fernando Henrique está "patinando" na questão social.
Quanto à Igreja Católica, ele fez
um "mea culpa" pelos erros cometidos pela ala mais politizada, à
qual pertence. Chamou de "imaturo" e se disse chocado com declarações do padre Marcelo Rossi
e criticou os métodos de ação da
Renovação Carismática.
Folha - Em 1993, quando o Betinho iniciou a Campanha contra a Fome, um estudo do Ipea
mostrava que o Brasil tinha 32
milhões de miseráveis. De lá para cá a situação melhorou?
D. Mauro - Há um estudo do
Ipea que mostra que há cerca de
85 milhões de pessoas no Brasil
que tentam viver com dois salários mínimos. O que significa que
não teriam condições de atender
todas as suas necessidades básicas
e, consequentemente, não teriam
condições de se alimentar de forma adequada. De um lado temos
uma redução no número de famintos, mas do outro temos um
crescente empobrecimento que
leva as pessoas, por tabela, a uma
situação de desnutrição.
Por um certo momento nós
sentimos uma melhora. Como o
próprio presidente (Fernando
Henrique Cardoso) se vangloriava, a população comia melhor.
Mas eu acho que já entramos
num período bastante grave em
que as pessoas, por causa do desemprego, entram num processo
óbvio de empobrecimento e até
de desespero.
Caxias é um município em que
circula muita riqueza, não é mais
uma cidade-dormitório. Mas
aqui você também encontra bolsões terríveis de inanição e fome.
As favelas que temos aqui em volta são chocantes. Há muita gente
passando fome.
Folha - Qual a diferença do Fórum de Segurança Alimentar
que o sr. coordena para a Campanha contra a Fome, da qual
também participou?
D. Mauro - A campanha do Betinho surgiu numa avaliação final
da luta contra a corrupção que levou ao impeachment de Collor.
Naquele instante, o Movimento
pela Ética na Política concluiu que
o pior tipo de corrupção que havia no Brasil, e continua havendo,
é o modelo econômico que faz
com que em um país como o nosso o trabalho não seja valorizado e
a natureza seja degradada, o que
provoca tanta exclusão social e
um quadro de fome.
A convicção que nós temos é
que os governos em geral não fazem administrações que interessam ao povo. Os governos não
governam, os partidos políticos
não formulam projetos mais globais e não conseguem catalisar a
energia do povo. É preciso desenvolver novas formas de participação política e de poder político.
A ação da cidadania deve ser a
principal marca dessa luta pela
transformação do Brasil. E nós
acentuávamos na época a solidariedade, a descentralização e a
parceria e o pluralismo. Como era
uma ação de cidadania, ela explodiu. Era um sentimento de humanidade e de indignação que se
transformou numa energia que
chegou a juntar mais de 7.000 comitês pelo Brasil.
Naquele momento nós tivemos
a ousadia de fazer uma parceria
com o presidente (Itamar Franco). Sentamos para discutir políticas públicas e ajudamos a acompanhar de forma crítica. Isso foi
inédito. Foi uma experiência que
terminou com a extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) no governo Fernando Henrique, em 10 de janeiro
de 1995. Essa parceria foi muito
importante para um governo de
transição difícil como foi o governo de Itamar. Sem essa parceria, o
governo (Fernando Henrique) ficou patinando.
Folha - Por que essa parceria
não continuou?
D. Mauro - Porque eles não quiseram. O novo presidente na época entendeu que tinha outros objetivos. Nós atribuímos à Ação da
Cidadania o mérito de ter colocado na agenda política, como questão prioritária, o combate à fome
e à exclusão.
Folha - A Comunidade Solidária não é uma continuação dos
programas do Consea?
D. Mauro - O Comunidade Solidária não foi feito para colocar como objetivo estratégico do governo o combate à fome. O objetivo
estratégico do governo era a estabilização da moeda. O Consea seria conflitante com o cerne de toda a política do governo.
Folha - E o que é o Fórum?
D. Mauro - O nosso movimento
é um movimento político. Nas
eleições do ano passado, decidimos procurar os governadores
que tinham nas suas plataformas
uma visão crítica do modelo econômico. Entendíamos que deveríamos cobrar, propor e fazer parceria com os governos que diziam
que era preciso mudar o rumo do
desenvolvimento.
A segurança alimentar passa
pela ocupação da terra, pela distribuição e comercialização dos
alimentos, abastecimento, controle de qualidade. Esse é um eixo.
Outro é o que se refere à educação
e nutrição. A meta do governo é
não aceitar a desnutrição.
Folha - E o Fórum também está voltado para ações emergenciais?
D. Mauro - No dia em que o
Brasil tiver segurança alimentar,
não vai precisar de cestas. Mas
nós entendemos, desde a época
do Betinho, que fome se combate
com comida. Criança é criança
agora. Até os seis anos de idade,
ela atravessa um período decisivo
de desenvolvimento. Fome e desnutrição nesse período significam
não atingir o desenvolvimento
humano a que tem direito, significa o risco de lesão cerebral. É evidente que para isso você precisa
ter programas emergenciais. Defendemos a distribuição de alimentos, mas com o fortalecimento das organizações comunitárias,
com uma visão de cidadania.
No caso da desnutrição infantil,
é óbvio que só o poder público
não vai resolver. Tem de ter um
movimento de solidariedade.
Quem no Brasil tem efetivamente
conseguido combater a desnutrição é a Pastoral da Criança. Só no
Estado de Minas ela tem 13 mil
agentes voluntários.
Folha - Quais são os Estados
que estão hoje comprometidos
com as propostas do Fórum?
D. Mauro - O primeiro, por razões óbvias, foi Minas, por causa
do presidente Itamar, que já tinha
sido parceiro no Consea e se elegeu com um discurso crítico ao
governo. Num encontro em Belo
Horizonte (dias 18 e 19) tivemos
gente do Amapá, Amazonas,
Acre, Mato Grosso do Sul, São
Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul,
Rio, Minas e Alagoas. Inclusive
representantes dos governos.
Folha - O governo federal acaba de lançar mais um projeto de
combate à pobreza, o Comunidade Ativa, que tem proposta
semelhante à do Fórum na medida em que propõe substituir o
assistencialismo por programas
de desenvolvimento definidos
pelas comunidades.
D. Mauro - Eu não me entusiasmo com esses projetos. São bons,
são importantes. Mas, se a gente
continuar obedecendo a critérios
que fazem com que 41% do Orçamento real para o ano 2000 seja
destinado para pagar as dívidas e
os serviços das dívidas, é óbvio
que não vai resolver o problema
da fome. Sem medidas no campo
do Legislativo, sem medidas que
priorizem a democratização da
terra, educação, capacitação para
o trabalho, criação de empregos,
distribuição de renda, não vamos
resolver nada.
Folha - Se o presidente Fernando Henrique o convidasse
para participar do governo, como fez o presidente Itamar
Franco, o sr. participaria?
D. Mauro - Eles não iriam convidar. Ele dispensou o Consea em
1995 e é um homem muito coerente, pelo menos era. O programa Comunidade Solidária é um
programa secundário. O eixo da
ação do governo sempre foi atrelar o Brasil à ordem econômica
internacional acreditando que esse é o caminho. Eu discordo.
Acho que não temos nenhum
plano de desenvolvimento para o
país até hoje. E nós atrelamos a
nossa navezinha brasileira a uma
nave-mãe espacial que já estava à
deriva havia muito tempo e que
agora ela mesma, por meio de alguns de seus instrumentos de
operação, como o Fundo Monetário Internacional, reconheceu
que os que seguiram as suas diretrizes se deram mal.
Para uma parceria hoje com o
governo federal nós temos que
entrar no cerne da questão. Nós
queremos discutir qual é o rumo
do desenvolvimento do país. O
resto vem depois.
Folha - Da mesma maneira
que o país vem mudando muito
ao longo desta década, a Igreja
Católica também mudou. Nós
assistimos nesse período, por
exemplo, ao enfraquecimento
da Teologia da Libertação e ao
crescimento da Renovação Carismática. O que mudou na igreja? Ela está hoje mais ou menos
sensível às questões sociais?
D. Mauro - Eu não diria que a
igreja não está sensível. Talvez a
resposta que ela busque dar traga
mais consolação do que cidadania. Essa é que é uma questão séria. Nós estamos vivendo movimentos de massa, com conteúdos, com expressões, com propostas que a mim não me convencem. Primeiro, porque parece que
estamos entrando numa disfarçada cruzada.
Folha - O sr. se refere exatamente a quê?
D. Mauro - Eu me refiro, por
exemplo, a um evento como o que
nós tivemos outro dia no Maracanã (12 de outubro). Refiro-me à
valorização de um método de trabalho de alguns padres ainda bastante jovens e que se revelam imaturos. Eu, por exemplo, achei
chocante a declaração do padre
Marcelo Rossi em que dizia que
procura mudar a imagem do padre porque essa imagem é do padre efeminado, mulherengo e alcoólatra. O padre brasileiro não é
isso. Isso revela um desconhecimento do que os padres estão vivendo por este país afora, o empenho de transformação social. Eu
fiquei surpreso e chocado com essa declaração porque foi extremamente ofensiva. Qual é a imagem
que ele está passando? É de um
padre que canta. Alguns que vi
cantando cantam mal, inclusive.
Como atores também não me comoveram.
Folha - Mas eles estão atraindo uma multidão que a igreja
não atrai há muito tempo.
D. Mauro - Em verdade, a igreja
sempre, em qualquer tempo, viveu duas realidades. A participação efetiva na comunidade eclesial no Brasil nunca foi mais de
10%. Mas em certos momentos
você sempre soube atrair multidões. Como num Congresso Eucarístico. Nós, da chamada -eu
não gosto da palavra, mas enfim- igreja empenhada na transformação social, acho que de fato
descuidamos um pouco do trabalho com a massa. A gente deixou
isso de lado, e acho que foi um erro bastante grave.
Mas a proposta agora não me
convence. No fundo, procura-se
trabalhar para reagir à invasão
das seitas. Uma coisa é a Renovação Carismática como uma manifestação desse pluralismo da igreja, como uma oportunidade para
as pessoas aprofundarem um
pouco mais a experiência de fé. É
um caminho para quem aprecia
esse método. Agora, você transformar a Renovação num instrumento de conquista, eu pessoalmente acho que não é por aí.
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