São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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LANTERNA NA POPA
A lógica do absurdo

ROBERTO CAMPOS

O pedido de extradição do general Augusto Pinochet feito à Justiça inglesa pelo juiz espanhol Baltasar Garzón só faz sentido dentro da lógica do absurdo. Se o bom juiz, que se autonomeou defensor "global" dos direitos humanos, fosse apostólico ao invés de exibicionista, priorizaria melhor seus alvos. No atletismo da violência, no desprezo pela vida humana e na sofisticação das torturas, Fidel Castro, beneficiário da longa experiência soviética, revelou maior determinação e melhor tecnologia do que Pinochet. Matou mais gente, aprisionou mais gente, torturou e exilou mais gente do que o ditador chileno. Baltasar Garzón parece desinteressado nessa contabilidade do terror.
Pinochet foi ditador durante 17 anos, e Fidel o é há 40 anos. Aquele aceitou deixar o poder após plebiscito democrático, ao qual já se sucederam duas eleições presidenciais democráticas. Esse rodízio de lideranças pareceria obsceno a Fidel. Atribuem-se à repressão chilena entre 3.000 e 4.000 mortos e desaparecidos. Fidel fuzilou 17 mil e não se sabe quantos pereceram nas prisões ou devorados pelos tubarões do Caribe, como náufragos "balseros". Cerca de 30 mil dissidentes chilenos deixaram o país em protesto contra Pinochet. Dois milhões de cubanos (20% da população) fugiram do paraíso de Fidel. O Chile é hoje a mais estável economia da América Latina, e Cuba, o maior desastre econômico da região. Pinochet impediu que o Chile caísse vítima de um experimento comunista, com seus conhecidos componentes: campos de concentração, ditadura do partido e degradação econômica. (Note-se que o pioneiro na introdução de gulags no continente foi Che Guevara, que criou o "Campo de Trabalho Coletivo" na península de Guanaha). O que Fidel fez foi interromper a evolução de Cuba de um regime mercantil-patrimonialista para um regime capitalista, que no correr do tempo levaria a uma abertura política.
Se tivesse imparcialidade judicatória na defesa dos direitos humanos, o ilustre juiz, simultaneamente com a extradição de Pinochet, promoveria a extradição de Fidel. Este, aliás, estava geograficamente mais próximo das cortes espanholas, pois participava de uma reunião em Portugal de chefes de Estado ibero-americanos (cerimônia que Vargas Llosa chama de "palhaçada anual"). A lógica implícita na sentença espanhola unilateral é que matar comunistas é crime hediondo, que a comunidade internacional deve punir, mas fuzilar burgueses e liberais é simples purificação ideológica.
Passemos a um outro tema de maior relevância para o nosso cotidiano. O Brasil está hoje no olho de um furacão financeiro oriundo da Rússia, que ameaça transformar-se em crise financeira "global" (a nova piada sobre capitalismo e socialismo é que aquele é vítima de "crises", e este, de "colapso"). Chegou para nós, com maior nitidez do que nunca, o penoso momento da verdade.
Havia uma ínsita contradição em nossa política econômica. É que o "gradualismo" nos ajustes cambiais exigiria radicalismo fiscal, sem o que cairíamos na maldição do déficit gêmeo -o fiscal e o cambial. Hoje, secaram as fontes de financiamento internacional. Eliminar o déficit fiscal tornou-se condição de sobrevivência, pois nem a juros extorsivos conseguimos captar financiadores. Esse é o propósito do "Programa de Estabilidade Fiscal" do governo FHC, que tem um componente emergencial e um componente estrutural.
Ante essa crise existencial, reações do tipo "aceitamos o ajuste desde que ele não prejudique Estados e municípios" ou "os recursos da área social são intocáveis" fazem pouco sentido. Nem adianta entregarmo-nos ao tradicional esporte da pesquisa de bodes expiatórios, porque sobram culpas para todos. Diz a oposição que foi o próprio governo FHC que se meteu nessa entaladela, obsessivamente preocupado com a reeleição. Retruca a equipe econômica que foi a oposição que bloqueou as reformas, que teriam evitado o problema. Há críticas para todos os gostos.
Os dois setores mais lacrimejantes contra o Programa de Estabilidade Fiscal são os governadores recém-eleitos e o bloco de partidos da esquerda, que se autoproclamam defensores do povo e apóstolos do "social". Os Estados "federados" não foram maltratados na Constituição de 88, que lhes transferiu importantes recursos (inclusive o poder exclusivo de tributar combustíveis, eletricidade, minérios e comunicações, antes partilhado com o governo central) sem lhes transferir responsabilidades equivalentes. Nem se pode dizer que a União trate extorsivamente as unidades federadas. Estudos recentes do Banco Mundial e do FMI demonstram que o governo brasileiro é campeão mundial na absorção de dívidas originárias de Estados e municípios. Nada menos que um terço da dívida atual da União corresponde a compromissos estaduais absorvidos pelo Tesouro nacional.
Quanto ao "social", trata-se de uma palavra mágica que dá um ar de respeitabilidade a qualquer canastrão que a pronuncia. Pode transformar-se num slogan perigoso. Quando Sarney popularizou a expressão "tudo pelo social", ponderei-lhe que isso era inviável. O slogan correto seria "tudo pelo econômico, para financiar o social". É que o social não é autofinanciável.
Sempre objetei a que as esquerdas brasileiras assumissem o monopólio da compaixão. Usam e abusam de jargões como "sensibilidade social" e "capitalismo selvagem", como se o socialismo real tivesse sido uma receita de bem-estar.
Na discussão concreta de reformas constitucionais, a posição das esquerdas foi nitidamente anti-social, visando à preservação de vantagens de grupos privilegiados. Certas doutrinas simpáticas, como a gratuidade do ensino nas universidades públicas, tornam-se instrumentos de desigualdade social, pois isso implica:
a) reduzirem-se os recursos para a educação fundamental e vocacional, que são a verdadeira educação de massa;
b) subvenção imerecida dos remediados e ricos, cujos filhos têm mais chances nos vestibulares, por serem treinados em cursinhos inacessíveis aos pobres.
As esquerdas se esmeraram na defesa da Previdência Social pública e obrigatória, dentro do regime de repartição. Este é antidemocrático, anti-social e antidesenvolvimentista. Antidemocrático porque priva o cidadão comum de escolher o administrador de sua poupança previdenciária. Anti-social porque as contribuições vão para uma vala comum, de onde, por meio de aposentadorias precoces e especiais, algumas classes politicamente mobilizadas obtêm tratamento privilegiado. Antidesenvolvimentista porque não constitui um fundo utilizável para alavancagem do desenvolvimento.
As esquerdas defenderam a estabilidade do funcionalismo público. Isso é anti-social porque impede punir ineficiências, além de gerar indisciplina ou desídia. Dificulta também corrigir o inchaço de folhas de pagamento, que constitui uma injustiça social para os contribuintes que pagam impostos para obter uma contrapartida de serviços, obtendo em troca um sórdido suprimento de burocratas arrogantes.
Há certamente críticas válidas a fazer ao chamado "Programa de Estabilização Fiscal". Repetindo a malograda experiência do "pacote 51", de novembro de 1997, o novo programa só se refere a impostos e cortes de gastos, sem nenhum calendário de aceleração de privatizações. As privatizações teriam resultados mais rápidos e mais seguros do que o corte de gastos (que enfrenta objeções políticas) e os impostos (que dependem do Legislativo).
A atual sensação de crise é um bom dissolvente para os resíduos de ideologias estatizantes que até hoje têm impedido a privatização da Petrossauro e do Banco do Brasil. Um pacote que incluísse a Petrossauro e a BR Distribuidora, o Banco do Brasil e a sua distribuidora de títulos e valores, o Banespa, a hidroelétrica de Furnas, a Eletronorte, a segunda etapa de Tucuruí, a securitização de recebíveis da Eletrobrás e a venda de ações sobrantes da Telebrás seria recebido pela finança internacional como complemento útil do programa fiscal, podendo mesmo compensar as deficiências ou atrasos deste.
O programa de estabilidade fala na criação de uma "nova cultura de austeridade fiscal", envolvendo uma ampla reestruturação do sistema. Mas não ataca o problema fundamental que é a substituição dos impostos "declaratórios" por impostos "automáticos", cobrados eletronicamente na fonte. A condensação de várias figuras tributárias (IR, ICMS, IPI, ISS) num tributo unificado sobre valor adicionado -o IVA- é certamente uma simplificação bem-vinda. Mas não elide a clivagem que hoje existe entre o universo legal de contribuintes e o universo dos não-pagantes, que abrange sonegadores, inadimplentes e segmentos da economia subterrânea. Enquanto persistir essa vasta clivagem, nosso fisco continuará injusto, dispendioso e ineficiente.


Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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