|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
Para sociólogo, novo presidente tem meios para fazer mudança social
Extrema esquerda é risco para Lula, diz Touraine
Andre Teixeira - 11.ago.2002/Agência o Globo
|
O sociólogo francês Alain Touraine, amigo pessoal de FHC, que diz estar otimista em relação ao país |
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva dispõe de "meios consideráveis" para cumprir as demandas
de transformação social de seu
eleitorado, segundo o sociólogo
francês Alain Touraine. "Há elementos de fraqueza e de força ao
lado de Lula, mas os de força me
parecem mais importantes", diz.
Entre os elementos de força,
Touraine enumera: liderança política de Lula, dinamismo econômico do país, forte consciência
nacional dos brasileiros e interesse dos EUA e do FMI em não terem "uma segunda Argentina".
Touraine expõe as fraquezas do
novo presidente: pouca experiência internacional e possibilidade
de surgimento de um extremismo
de esquerda. Ele ressalta sua desconfiança em relação aos padres
herdeiros da Teologia da Libertação que atuam com o MST (Movimento Sem Terra).
Para ele, Lula é um "fenômeno
brasileiro" e sua influência sobre
as esquerdas latino-americanas
deverá ser pequena.
Touraine, 77, é diretor na Escola
de Altos Estudos em Ciências Sociais e um dos mais respeitados
intelectuais franceses. Tem várias
obras traduzidas no Brasil, entre
elas "A Crítica da Modernidade"
(Vozes) e "Como Sair do Liberalismo?" (Edusc). Amigo pessoal
de Fernando Henrique Cardoso,
deverá ser uma das companhias
mais constantes de FHC em sua
temporada parisiense. "Quero organizar alguma coisa com Fernando Henrique, mas sem criar
obrigações excessivas para ele."
Leia a seguir trechos da entrevista de Touraine à Folha.
Folha - Como o sr. recebeu a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva?
Alain Touraine - Foi um evento
extremamente importante. Primeiro, porque sua eleição corresponde a uma demanda muito forte da maioria dos brasileiros de
uma transformação social. Segundo, porque a passagem de poder e esse projeto de transformação está se operando numa situação perfeitamente democrática,
sem violência nem espírito de
ruptura. Terceiro, porque tudo isso não ocorreria sem as qualidades notáveis tanto de Lula quanto
de Fernando Henrique. Por esses
motivos, eu felicito tanto o Brasil
quanto os brasileiros.
Folha - Quais são as chances que
Lula têm de responder à demanda
de transformação colocada por
seus eleitores?
Touraine - Devo dizer que há elementos de fraqueza e de força ao
lado de Lula, mas os de força me
parecem mais importantes. Primeiro, sua liderança. No passado
disseram que havia vários PTs e
que Lula era um símbolo, mas
não dirigia verdadeiramente o
partido. Ora, isso não corresponde à realidade. Tem-se a impressão de que ele exerce um controle
bastante forte e tem mais capacidade de ação do que pensamos.
Além disso, o que sempre me
surpreende um pouco, o Brasil,
apesar da dimensão de sua pobreza e mesmo da miséria, sem falar
da desorganização social, é um
país muito mais avançado e sólido do que se diz. Aqui preciso citar o mérito do [ex-"presidente
Fernando Henrique, que penso,
ao contrário de outros intelectuais, ter sido sempre um social-democrata que fez transformações no Brasil, levando o país
avançar em vários setores, como
educação e saúde. É má-fé não reconhecer isso.
Outra força extraordinária do
Brasil é a sua consciência nacional, o que não é absolutamente o
caso da Argentina. Há na alta administração brasileira e, em particular no Itamaraty, um forte espírito da função pública, como se
diz na França. As dificuldades do
Brasil fazem esquecer um pouco
que o país é de um surpreendente
dinamismo econômico. Finalmente, o que me interessa em
particular, o Brasil sempre guardou um grande sentido da pesquisa, mesmo nos piores momentos, reconhecendo que a universidade é um elemento dinamizador
da sociedade. A USP é hoje a única verdadeira universidade da
América Latina. Tudo isso são indicadores da força do Brasil, e não
encontro senão motivos para ser
otimista, assim como não vejo senão razões para ser pessimista a
propósito da Argentina.
Folha - Mas o sr. pensa que Lula e
o seu partido têm condições de promover mudanças sociais no país?
Touraine - Se você quer que eu
diga "sim" ou "não", eu penso
que minha resposta é: sim, terá
condições. Mas quais são as suas
fraquezas e os perigos? Os perigos
são sempre os mesmos no Brasil,
como o de vermos reaparecer um
populismo de extrema esquerda,
por exemplo. Eu desconfio sempre dos católicos de extrema-esquerda no Brasil, como os padres
herdeiros da Teologia da Libertação que atuam no MST. Há vários
setores mal controlados, seja na
cidade ou no campo, que podem
então fazer uma certa oposição de
esquerda como se vê em diferentes países, na França inclusive.
Uma outra fraqueza de Lula é a
sua falta de experiência internacional -e não estou dizendo de
experiência política, como as pessoas costumam lembrar primeiramente, o que não é o caso, pois
ele é um político profissional, com
25 anos de atividades. Ele precisaria ser bem aconselhado nas questões de ordem internacional. Suas
primeiras iniciativas, com um
gesto em favor do Mercosul, me
pareceram bastante boas. Nesse
tópico, Lula tem a seu favor o fato
de que nem os EUA nem o FMI
querem uma segunda Argentina.
Isso quer dizer que o Brasil, se for
gerido seriamente, encontrará
apoios que a Argentina hoje dificilmente encontra.
Folha - Como a vitória de Lula pode influenciar as esquerdas latino-americanas?
Touraine - Acredito pouco na
existência da América Latina, sobretudo quando se olha desde o
Brasil. Há o Mercosul e não muito
mais coisa. Não vejo como Lula
pode reforçar a influência do PRD
(Partido da Revolução Democrática), no México, por exemplo. Os
problemas dos países no continente são muito diversos. Penso
que Lula deverá permanecer um
fenômeno brasileiro. Se exercer
alguma influência, será sobretudo
a de demonstrar que a idéia de democracia pode ir junto com a de
progresso social e que é preciso
agora colocar de lado todos os
discursos sobre revolução.
Folha - Ao contrário do que se poderia imaginar, o encontro entre
Lula e Bush foi bastante positivo. O
que o sr. acha que produziu essa
cordialidade recíproca?
Touraine - Hoje a política americana está inteiramente concentrada no Oriente Médio e na guerra e
que, por consequência, os EUA
querem ter o menor número de
problemas possíveis e exercer a
menor pressão possível sobre os
países latino-americanos. Os
EUA têm todo o interesse em que
o Brasil seja um país calmo e sólido. É uma preocupação de ambos
os países que não haja conflito
aberto. Não tenho nenhuma simpatia por esse tipo de antiamericanismo virulento e sistemático,
tipo "Le Monde Diplomatique", e
o Brasil não tem nada a ganhar fazendo a mesma linha.
Folha - Os primeiros passos do
governo Lula indicam um forte
pragmatismo. O sr. pensa que os
ideais do PT serão sacrificados em
nome da governabilidade?
Touraine - Não gosto dessa maneira de falar. O que quer dizer
mudar a sociedade numa situação
de ingovernabilidade? Não se
consegue fazer nada assim. Para
que as mudanças ocorram é preciso que as instituições funcionem. Lula está empregando linguagem moderada porque os
problemas do Brasil mudaram.
Sempre se falou em dois brasis,
mas a miséria do país já não é
mais rural: é urbana. O grande
problema do país é a destruição
ou a sobrecarga das grandes metrópoles. O que se espera é que ele
tome medidas para amenizar o
problema da habitação, da infra-estrutura urbana e da segurança.
Folha - Lula deverá fazer um verdadeiro governo de esquerda?
Touraine - Os conceitos "direita"
e "esquerda", bem como "socialismo", "comunismo" ou "fascismo", são muito europeus e jamais
corresponderam exatamente à
realidade latino-americana. Há
vários exemplos: Perón foi um
homem de direita ou de esquerda? O que interessa é o seguinte:
será que um governo concentra
sua ação sobre uma minoria ou
uma maioria? Será que ele tenta
diminuir a distância entre o centro e a periferia? Acredito que Lula
e a grande maioria de brasileiros
são favoráveis à redução das desigualdades e da exclusão social.
Folha - Se Lula adota um discurso
mais moderado, centrista, o sr. não
acha que isso poderá gerar conflitos no seu partido, onde muitos
professam idéias marxistas?
Touraine - Tudo isso é absolutamente verdadeiro, mas preciso
dizer que todos os partidos social-democratas europeus foram formados com idéias marxistas, o
que não os impediu de serem
mais tarde de centro-esquerda e
mesmo de centro-direita. Creio
que o que se deve esperar é que as
escolhas ideológicas percam progressivamente sua importância e
as grandes idéias sejam as de como combinar um método democrático de governo com uma vontade de transformação social.
Folha - Poderá haver reações e
mesmo rupturas dentro do PT?
Touraine - Tensões, talvez, mas
não muito mais que isso. Num
partido que depois de 20 anos
chega ao poder, aquelas pessoas
que se afastarem dele agora estão
condenadas politicamente à morte. No momento, sejamos realistas: Lula dispõe de meios de ação
consideráveis. Há expectativas
muito positivas e não penso que
pessoas e grupos políticos estão
com vontade de, antes de tudo,
radicalizarem a situação.
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Frases Índice
|