São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA

Para sociólogo, novo presidente tem meios para fazer mudança social

Extrema esquerda é risco para Lula, diz Touraine

Andre Teixeira - 11.ago.2002/Agência o Globo
O sociólogo francês Alain Touraine, amigo pessoal de FHC, que diz estar otimista em relação ao país


ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva dispõe de "meios consideráveis" para cumprir as demandas de transformação social de seu eleitorado, segundo o sociólogo francês Alain Touraine. "Há elementos de fraqueza e de força ao lado de Lula, mas os de força me parecem mais importantes", diz.
Entre os elementos de força, Touraine enumera: liderança política de Lula, dinamismo econômico do país, forte consciência nacional dos brasileiros e interesse dos EUA e do FMI em não terem "uma segunda Argentina".
Touraine expõe as fraquezas do novo presidente: pouca experiência internacional e possibilidade de surgimento de um extremismo de esquerda. Ele ressalta sua desconfiança em relação aos padres herdeiros da Teologia da Libertação que atuam com o MST (Movimento Sem Terra).
Para ele, Lula é um "fenômeno brasileiro" e sua influência sobre as esquerdas latino-americanas deverá ser pequena.
Touraine, 77, é diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e um dos mais respeitados intelectuais franceses. Tem várias obras traduzidas no Brasil, entre elas "A Crítica da Modernidade" (Vozes) e "Como Sair do Liberalismo?" (Edusc). Amigo pessoal de Fernando Henrique Cardoso, deverá ser uma das companhias mais constantes de FHC em sua temporada parisiense. "Quero organizar alguma coisa com Fernando Henrique, mas sem criar obrigações excessivas para ele."
Leia a seguir trechos da entrevista de Touraine à Folha.

Folha - Como o sr. recebeu a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva?
Alain Touraine -
Foi um evento extremamente importante. Primeiro, porque sua eleição corresponde a uma demanda muito forte da maioria dos brasileiros de uma transformação social. Segundo, porque a passagem de poder e esse projeto de transformação está se operando numa situação perfeitamente democrática, sem violência nem espírito de ruptura. Terceiro, porque tudo isso não ocorreria sem as qualidades notáveis tanto de Lula quanto de Fernando Henrique. Por esses motivos, eu felicito tanto o Brasil quanto os brasileiros.

Folha - Quais são as chances que Lula têm de responder à demanda de transformação colocada por seus eleitores?
Touraine -
Devo dizer que há elementos de fraqueza e de força ao lado de Lula, mas os de força me parecem mais importantes. Primeiro, sua liderança. No passado disseram que havia vários PTs e que Lula era um símbolo, mas não dirigia verdadeiramente o partido. Ora, isso não corresponde à realidade. Tem-se a impressão de que ele exerce um controle bastante forte e tem mais capacidade de ação do que pensamos.
Além disso, o que sempre me surpreende um pouco, o Brasil, apesar da dimensão de sua pobreza e mesmo da miséria, sem falar da desorganização social, é um país muito mais avançado e sólido do que se diz. Aqui preciso citar o mérito do [ex-"presidente Fernando Henrique, que penso, ao contrário de outros intelectuais, ter sido sempre um social-democrata que fez transformações no Brasil, levando o país avançar em vários setores, como educação e saúde. É má-fé não reconhecer isso.
Outra força extraordinária do Brasil é a sua consciência nacional, o que não é absolutamente o caso da Argentina. Há na alta administração brasileira e, em particular no Itamaraty, um forte espírito da função pública, como se diz na França. As dificuldades do Brasil fazem esquecer um pouco que o país é de um surpreendente dinamismo econômico. Finalmente, o que me interessa em particular, o Brasil sempre guardou um grande sentido da pesquisa, mesmo nos piores momentos, reconhecendo que a universidade é um elemento dinamizador da sociedade. A USP é hoje a única verdadeira universidade da América Latina. Tudo isso são indicadores da força do Brasil, e não encontro senão motivos para ser otimista, assim como não vejo senão razões para ser pessimista a propósito da Argentina.

Folha - Mas o sr. pensa que Lula e o seu partido têm condições de promover mudanças sociais no país?
Touraine -
Se você quer que eu diga "sim" ou "não", eu penso que minha resposta é: sim, terá condições. Mas quais são as suas fraquezas e os perigos? Os perigos são sempre os mesmos no Brasil, como o de vermos reaparecer um populismo de extrema esquerda, por exemplo. Eu desconfio sempre dos católicos de extrema-esquerda no Brasil, como os padres herdeiros da Teologia da Libertação que atuam no MST. Há vários setores mal controlados, seja na cidade ou no campo, que podem então fazer uma certa oposição de esquerda como se vê em diferentes países, na França inclusive.
Uma outra fraqueza de Lula é a sua falta de experiência internacional -e não estou dizendo de experiência política, como as pessoas costumam lembrar primeiramente, o que não é o caso, pois ele é um político profissional, com 25 anos de atividades. Ele precisaria ser bem aconselhado nas questões de ordem internacional. Suas primeiras iniciativas, com um gesto em favor do Mercosul, me pareceram bastante boas. Nesse tópico, Lula tem a seu favor o fato de que nem os EUA nem o FMI querem uma segunda Argentina. Isso quer dizer que o Brasil, se for gerido seriamente, encontrará apoios que a Argentina hoje dificilmente encontra.

Folha - Como a vitória de Lula pode influenciar as esquerdas latino-americanas?
Touraine -
Acredito pouco na existência da América Latina, sobretudo quando se olha desde o Brasil. Há o Mercosul e não muito mais coisa. Não vejo como Lula pode reforçar a influência do PRD (Partido da Revolução Democrática), no México, por exemplo. Os problemas dos países no continente são muito diversos. Penso que Lula deverá permanecer um fenômeno brasileiro. Se exercer alguma influência, será sobretudo a de demonstrar que a idéia de democracia pode ir junto com a de progresso social e que é preciso agora colocar de lado todos os discursos sobre revolução.

Folha - Ao contrário do que se poderia imaginar, o encontro entre Lula e Bush foi bastante positivo. O que o sr. acha que produziu essa cordialidade recíproca?
Touraine -
Hoje a política americana está inteiramente concentrada no Oriente Médio e na guerra e que, por consequência, os EUA querem ter o menor número de problemas possíveis e exercer a menor pressão possível sobre os países latino-americanos. Os EUA têm todo o interesse em que o Brasil seja um país calmo e sólido. É uma preocupação de ambos os países que não haja conflito aberto. Não tenho nenhuma simpatia por esse tipo de antiamericanismo virulento e sistemático, tipo "Le Monde Diplomatique", e o Brasil não tem nada a ganhar fazendo a mesma linha.

Folha - Os primeiros passos do governo Lula indicam um forte pragmatismo. O sr. pensa que os ideais do PT serão sacrificados em nome da governabilidade?
Touraine -
Não gosto dessa maneira de falar. O que quer dizer mudar a sociedade numa situação de ingovernabilidade? Não se consegue fazer nada assim. Para que as mudanças ocorram é preciso que as instituições funcionem. Lula está empregando linguagem moderada porque os problemas do Brasil mudaram. Sempre se falou em dois brasis, mas a miséria do país já não é mais rural: é urbana. O grande problema do país é a destruição ou a sobrecarga das grandes metrópoles. O que se espera é que ele tome medidas para amenizar o problema da habitação, da infra-estrutura urbana e da segurança.

Folha - Lula deverá fazer um verdadeiro governo de esquerda?
Touraine -
Os conceitos "direita" e "esquerda", bem como "socialismo", "comunismo" ou "fascismo", são muito europeus e jamais corresponderam exatamente à realidade latino-americana. Há vários exemplos: Perón foi um homem de direita ou de esquerda? O que interessa é o seguinte: será que um governo concentra sua ação sobre uma minoria ou uma maioria? Será que ele tenta diminuir a distância entre o centro e a periferia? Acredito que Lula e a grande maioria de brasileiros são favoráveis à redução das desigualdades e da exclusão social.

Folha - Se Lula adota um discurso mais moderado, centrista, o sr. não acha que isso poderá gerar conflitos no seu partido, onde muitos professam idéias marxistas?
Touraine -
Tudo isso é absolutamente verdadeiro, mas preciso dizer que todos os partidos social-democratas europeus foram formados com idéias marxistas, o que não os impediu de serem mais tarde de centro-esquerda e mesmo de centro-direita. Creio que o que se deve esperar é que as escolhas ideológicas percam progressivamente sua importância e as grandes idéias sejam as de como combinar um método democrático de governo com uma vontade de transformação social.

Folha - Poderá haver reações e mesmo rupturas dentro do PT?
Touraine -
Tensões, talvez, mas não muito mais que isso. Num partido que depois de 20 anos chega ao poder, aquelas pessoas que se afastarem dele agora estão condenadas politicamente à morte. No momento, sejamos realistas: Lula dispõe de meios de ação consideráveis. Há expectativas muito positivas e não penso que pessoas e grupos políticos estão com vontade de, antes de tudo, radicalizarem a situação.



Texto Anterior: Painel
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.