São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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CELSO PINTO

Câmbio e confiança pressionam a inflação

Um dos maiores desafios do governo Lula, a partir de hoje, será reconstruir a credibilidade do sistema de metas inflacionárias. Hoje, o sistema está desacreditado. Não porque a inflação está alta, mas porque ele está sendo incapaz de orientar as expectativas da sociedade.
A mediana das expectativas de mercado para a inflação em 2003 está em 11%, mas ela embute projeções que vão de 4,3% a 18%. Obviamente, uma dispersão desse tipo indica que o sistema está em cheque. O que fazer?
O diagnóstico do Banco Central, incluído no Relatório de Inflação, divulgado segunda-feira, é claro: os dois principais fatores de pressão inflacionária são o câmbio e as expectativas. É aí que a guerra pode começar a ser ganha.
O relatório mostra que, com o câmbio médio a R$ 3,55, a mediana da projeção do mercado para o IPCA em 11% e os juros básicos (Selic) em 25%, a projeção central da inflação vai a 9,5% neste ano, muito acima do teto de 6,5% indicado pela meta atual. Mesmo considerando uma melhora nas expectativas, que reduzisse a projeção do mercado para o IPCA para 8% e com o câmbio médio em R$ 3,20, o modelo do BC indica uma inflação central de 7,3% em 2003, também acima do teto.
Um desafio imediato para o BC, portanto, é definir o que fará com a meta oficial. A primeira reação do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e do presidente do BC, Henrique Meirelles, foi dizer que não haverá mudança imediata na meta. Essa postura coincide com a análise interna do BC. Um importante diretor argumenta que o momento atual é comparável aos meses iniciais do sistema, em 1999, quando havia enorme dispersão das expectativas, só ajustada depois de alguns meses.
Já existem sinais de recuo em alguns índices de preços. A ordem natural da queda é que ela comece e seja mais forte no IPA (atacado), mais sensível ao câmbio, seja seguida pelo IGP e, mais lentamente, pelo IPCA.
Por essa análise, faz sentido esperar a poeira assentar antes de decidir sobre uma eventual revisão da meta. O PT vem tentando domar as expectativas do mercado desde algumas semanas antes da eleição. Tem reafirmado compromissos com o equilíbrio fiscal e monetário, anunciado reformas, nomeado uma equipe econômica com perfil liberal e insistido na autonomia operacional do BC. Além disso, tacitamente, o novo governo endossou o aumento da Selic de 22% para 25%. Nos últimos dois meses, o ex-presidente do BC, Armínio Fraga, operou em contato diário com a nova equipe, ajudando a sugerir formas de reverter expectativas negativas.
Alguma recompensa já houve. Depois do aumento da Selic, o juro futuro caiu um pouco e a curva ficou um pouco menos positivamente inclinada. A projeção de inflação estabilizou. O câmbio ficou em R$ 3,55. É possível que, se os primeiros movimentos concretos do governo forem numa direção positiva, haja ganhos adicionais: algum alívio no câmbio e menos dispersão na projeção inflacionária. A inflação pode ser ajudada, também, pelo fim da entressafra agrícola.
É importante considerar que o diagnóstico do BC é que não há um processo generalizado e descontrolado de aumento de preços. A alta chegou a 80% dos preços do IPCA, mas está concentrada na mudança de preços relativos: subiram, basicamente, os preços puxados pelo câmbio. Mais importante, os preços dos produtos influenciados pelo câmbio ("comercializáveis") subiram 15,4% até novembro, para um ajuste cambial de 51,4%. O repasse, portanto, ficou em torno de 15%, índice semelhante ao de 1999 e à média do que ocorreu nos últimos quatro anos.
Em outros termos, o impacto direto do câmbio sobre os preços já teria sido absorvido em 2002. A menos que o coeficiente de repasse tenha aumentado, por alguma razão, o que só ficará claro nos próximos meses.
É bom lembrar, contudo, que em 1999 o câmbio real estava claramente sobrevalorizado e a economia quase em recessão, dois fatores que ajudaram muito a conter o repasse do câmbio sobre os preços. Desta vez, o real está claramente superdesvalorizado e a economia, acelerando, o que aumenta o risco inflacionário.
De todo modo, se o diagnóstico do BC estiver correto e o grosso do repasse direto do câmbio sobre os preços já tiver ocorrido em 2002, restaria para 2003, principalmente, o efeito da "inércia". O BC, nos últimos anos, definiu uma política flexível para lidar com choques de oferta, como a desvalorização cambial: descontar o impacto direto do câmbio sobre a meta oficial da inflação do ano e diluir o efeito inercial em dois anos (ou seja, descontando metade dele da meta de cada ano).
Por esses critérios, a meta efetiva de 2003 já havia subido de 4% para 6%, perto do teto de 6,5%. Uma alternativa à mudança na meta oficial seria acomodar um impacto ainda maior do choque cambial em relação à meta inflacionária efetiva, colocando-a bem acima da meta oficial. Só faria sentido, contudo, se fosse feito de forma transparente e tecnicamente defensável.
No modelo usado pelo BC, o peso das expectativas aumentou muito como fator explicativo da inflação, desde 1999. A batalha das expectativas, portanto, tornou-se crucial na inflação, tanto quanto já é, por razões óbvias, em relação à área externa.
O diretor do BC discorda inteiramente do peso que alguns analistas têm colocado na expansão monetária recente como fator explicativo da inflação. A expansão seria explicada pela liberação dos recursos do FGTS desde julho e, em parte, pela elevação do compulsório. O dinheiro do FGTS, uns R$ 2 bilhões por mês, vira moeda disponível, faz subir a base monetária e ativa o consumo. Mas o "excesso" de moeda no sistema é enxugado, diariamente, no overnight, argumenta este diretor do BC. Se tivesse sobrado tanta moeda, os juros não teriam permanecido tão altos nos últimos meses.
Em suma, o incêndio não seria generalizado. Pode ser contido pela restauração da confiança e com uma política monetária apertada. O desafio está posto.

E-mail: CelPinto@uol.com.br



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