São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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DISCURSO DE POSSE

Presidente pede "mutirão contra fome" e troca ênfase na estabilidade por antigas bandeiras do PT ao ser empossado

Lula prega mudança 'com coragem e cuidado'

Sergio Lima/Folha Imagem
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assina o documento da posse durante cerimônia no Congresso Nacional


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

No discurso de posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trocou a ênfase na estabilidade da economia pela volta à retórica da mudança, mas deixando claro que elas não virão de "um arroubo voluntarista", mas com "paciência e perseverança", com "coragem e cuidado".
Todo o discurso foi uma mescla de menções às antigas bandeiras do PT temperadas com a nova moderação que o partido exibiu desde que a vitória eleitoral começou a se desenhar no horizonte.
A ênfase na mudança, tema de sua campanha e suposta ou real razão de sua vitória, não impediu a cautela de ressalvar que é necessário "manter sob controle as nossas muitas e legítimas ansiedades sociais, para que elas possam ser atendidas no ritmo adequado e no momento justo".
De todo modo, o presidente escolheu abrir o discurso com a palavra mudança:
"Mudança. Essa é a palavra chave. Essa foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro", começou Lula, exatamente às 15h20 de ontem, 14 minutos depois de ter sido declarado empossado pelo presidente do Congresso, senador Ramez Tebet (PMDB-MT). No plenário de 454 lugares, havia poucos lugares vazios, assim mesmo porque muitos parlamentares preferiram ficar de pé, estimulando um ambiente menos de solenidade e mais de palanque eleitoral, aos gritos de "olê/olê/olá/Lula/Lula".
Com os óculos que dispensara para as protocolares menções às autoridades presentes, Lula leu um discurso de 44 minutos, pontuado 30 vezes por aplausos, embora, na maioria delas, as palmas não fossem fortes o suficiente para interromper a fala do presidente. Com nascente fama de chorão, Lula só uma vez passou o lenço pelos olhos, como se estivesse enxugando lágrimas, pouco após ter sido tocado o Hino Nacional.
O presidente cantou-o inteiro, mas baixinho, ao contrário dos ministros Celso Amorim (Exterior) e Ricardo Berzoini (Previdência), que o fizeram com força.

Mutirão, de novo
O discurso de posse dedicou longo trecho e forte ênfase ao combate à fome. Lula chegou a convocar a população para "um mutirão nacional contra a fome".
Oito anos exatos antes, também no seu discurso de posse, o antecessor de Lula, Fernando Henrique Cardoso pedira a mesmíssima coisa: "um grande mutirão nacional, unindo o governo e a sociedade, para varrer do mapa do Brasil a fome e a miséria".
A julgar pela avaliação de seu sucessor, FHC fracassou redondamente. Na mais contundente crítica ao modelo vigente, Lula atacou: "Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome. Diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades. Diante das ameaças à soberania nacional. Da precariedade avassaladora da segurança pública. Do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens. Diante do impasse econômico, social e moral do país -a sociedade brasileira escolheu mudar".
Em seu discurso, Lula passeou pela história do Brasil, dos senhores de engenho à industrialização, para pontuar cada período com a frase "mas não venceu a fome".
Emendou, então: "Enquanto houver um irmão brasileiro, ou uma irmã brasileira, passando fome, teremos motivos de sobra para nos cobrir de vergonha".
Repetiu depois a frase que usara que usara em seu discurso da vitória, no dia 28 de outubro: "Se, ao final de meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão de minha vida".
Mas, ao contrário da ênfase de outubro, cravada na repetição da "Carta ao Povo Brasileiro", o documento com o qual o PT se comprometeu com o combate à inflação, com a responsabilidade fiscal e com o respeito aos contratos, o texto de ontem revisitou bandeiras históricas do partido.
Reforma agrária, por exemplo, mencionada com ênfase superior às outras quatro reformas que o PT anunciou durante a campanha (previdenciária, tributária, política e da legislação trabalhista).
Mas, como no caso das mudanças, a citação à reforma agrária veio acompanhada da cautela: será "organizada e planejada" e aplicada exclusivamente às terras ociosas ("as terras produtivas se justificam por si mesmas").
Lula voltou também ao tema do "pacto social", item permanente de seus discursos, durante a campanha e depois da vitória. Anunciou inclusive que pretende instalar já em janeiro o CNDES (Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Lula dedicou uma porção surpreendentemente grande de seu discurso à política externa. Reafirmou a prioridade para o Mercosul e para a América do Sul e dedicou magérrimas três linhas aos Estados Unidos (para defender "uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo", o que é o óbvio).
Como já havia antecipado à Folha seu chanceler, Celso Amorim, Lula disse que o essencial, nas negociações comerciais em que o Brasil está envolvido, "é preservar os espaços de flexibilidade para as nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico".
A cerimônia de posse foi assistida por todos os mandatários estrangeiros que vieram para a posse de Lula, o que provocou conjuntos insólitos. Exemplo: o senador Romeu Tuma (PFL-SP), que foi carcereiro de Lula quando o agora presidente foi afastado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, conversou com o ditador cubano, Fidel Castro, que sentou-se ao lado de José Dirceu, que refugiou-se em Cuba para escapar à perseguição do regime militar e para treinar guerrilha contra o regime de que Tuma era um dos policiais-chefes.
Provocou também a busca de "carona" na popularidade do novo presidente, tanto por Ramez Tebet, como por Severino Cavalcanti, primeiro-secretário da Câmara. Cavalcanti lembrou sua origem de retirante nordestino. E Tebet lembrou que Lula assinara o termo de posse com a caneta do presidente do Congresso, que, com isso, se tornou "histórica".
Passava das 16h quando Lula virou a 40ª página de seu discurso para, pela primeira vez improvisar: "Viva o povo do Brasil".



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