São Paulo, Quarta-feira, 02 de Fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI
Com vocês, os Amigos de Iporanga

Deve-se ao promotor Edward Ferreira Filho, 36 anos, frequentador da praia das Pitangueiras, e à repórter Maria Rita Alonso, 23 anos, frequentadora da praia de Pernambuco (ambas no Guarujá), a exposição de um dos mais belos casos de apropriação e exclusão a que o andar de cima submete a choldra.
Desde os anos 40, os ricos paulistas frequentam as praias do Guarujá. A mais famosa, nos 60, era a das Pitangueiras. Lá, os condomínios dos edifícios de luxo montavam tendas para seus moradores. Um deles fritava salsichas com raios do sol enquanto um garçom servia champanhe. Viviam em paz com a patuléia. Podia-se comer um camarão empanado a poucos metros de um miserável à milanesa e ninguém se incomodava com isso.
Passou o tempo e uma nova espécie de ricaços achou melhor isolar-se da escumalha, procurando praias cada vez mais longínquas. O método não deu resultado, porque a miséria tem o mau hábito de perseguir o luxo, empesteando-lhe as praias. Buscaram-se praias desertas, de difícil acesso.
Esse foi o caso de quatro delas, todas no Guarujá. Chamam-se São Pedro, Prainha Branca e Tijucopava (nacionalmente conhecida por ter entre seus moradores o juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lau-Lau). A quarta é Iporanga. Nela têm propriedades os doutores Luiz Carlos Mendonça de Barros e Andrea Calabi. Tucanos ilustres, um presidiu e o outro preside o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Repetindo: Social.
Em todos os casos as glebas próximas às praias foram loteadas. À entrada de cada uma delas, os felizes moradores desses pedaços de mata atlântica puseram guaritas e meganhas. Só entrava quem tivesse carteirinha ou autorização escrita.
Em dezembro de 1996, o promotor Edward Ferreira Filho (R$ 6.000 de salário), dez anos de profissão, mulher professora e dois filhos, achou que se devia cumprir a lei. A Constituição de São Paulo (artigo 285) e a lei federal 7661/88 (artigos 6 e 10) dizem que é livre o acesso às praias do Estado.
Nessa época, um vigilante da turma de Iporanga viu chegar à portaria um Fusca enferrujado, com placa de Cubatão. Dentro, dois casais, com cadeirinhas de praia. Mandou que voltassem. Erro. Eram dois estagiários da promotoria e dois auxiliares do foro da comarca. Edward entrou com uma liminar pedindo que fosse dado o livre acesso às quatro praias. Ganhou nas quatro. Hoje, sua liminar está suspensa para uma delas, a pedido da Associação dos Amigos de Iporanga. Nas outras três, cujos casos são idênticos, o sacrossanto Ministério Público já ganhou em primeira e segunda instâncias. Se tudo correr bem, o caso dos Amigos de Iporanga será julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ainda neste semestre.
Calabi e Mendonça de Barros são Amigos de Iporanga. Os Amigos sustentam que podem manter a barreira, pois pagam pela segurança da gleba (72 vigilantes, com motoneta e cassetete), calçaram-lhe a via de acesso à praia e cuidam daquele pedaço de beleza.
Os Amigos preservam o equilíbrio social e ecológico da propriedade barrando os automóveis da choldra quatro quilômetros antes da praia. Só passam pela polícia particular os carros dos Amigos. Os demais devem pagar impostos, cumprir as leis e seguir a pé. Leis de quem? Dos Amigos e do prefeito do Guarujá, que lhes entregou a administração da gleba do loteamento. Assim como o doutor Mendonça de Barros privatizou o sistema telefônico nacional, o prefeito privatizou as normas de acesso a um pedaço do seu município, onde tem casa o doutor Calabi, que vai privatizar as companhias elétricas.
Os Amigos de Iporanga poderiam ter fechado o acesso à praia pelo caminho que passa por suas glebas se tivessem constituído um condomínio. Seria seu direito e é o direito de quem vive nesse tipo de propriedade. Os Amigos sabem que há uma diferença entre condomínio e loteamento. Os moradores de um condomínio pagam IPTU sobre a área total da propriedade, incluindo as ruas, praças e áreas comuns, seja o corredor do nono andar ou a praça vizinha. Os moradores de um loteamento só pagam imposto sobre a área da propriedade de cada um. Isso vale tanto para os Amigos de Iporanga quanto do Jardim Primavera, na periferia de qualquer grande cidade brasileira. Se um Amigo de Iporanga paga à Viúva R$ 2.500 por seu pedaço de loteamento, teria que pagar R$ 25 mil pelos direitos de condômino. Tanto os doutores Mendonça de Barros e Calabi podem ir e vir de Mercedes, por Jardim Primavera, quanto a ralé desses jardins sem flores pode circular de Fusca enferrujado pelas ruas de Iporanga. (Em caso de dúvida, consultem-se os artigos 18 e 22 da lei 6766/79.)
Grande idéia a dos Amigos. Pagam IPTU de loteamento de Terceiro Mundo, mas repelem a choldra atribuindo-se direitos de condôminos de Palm Beach.
A presença de dois presidentes do BNDES na lista de Amigos de Iporanga confirma à saciedade a memorável observação do economista Armando Castelar, chefe do departamento econômico da instituição. Em dezembro, numa entrevista ao repórter Roberto Cosso, ele deu a seguinte explicação para a política de privatizações do tucanato: "O governo não objetiva o lucro, mas um ganho social".
Se o governo objetivasse o lucro, estaria cobrando dos Amigos de Iporanga IPTU de condomínio (coisa que a essa altura já nem pode fazer). Como objetiva o ganho social, mantém os contribuintes longe da praia, privatiza a gleba e, de quebra, lhes valoriza os terrenos que compraram a preço de banana. Um dos Amigos comprou há pouco mais um naco de mata. Deve ter feito bom negócio, sobretudo se o Tribunal de Justiça de São Paulo lhe assegurar o benefício social da privatização daquele pedaço do município do Guarujá.


Texto Anterior: Rumo a 2002: Para Maciel, Roseana pode ser candidata do PFL a presidente
Próximo Texto: Funai: FHC oferece novo cargo para Villas Bôas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.