|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
"Entre os pobres, o presidente tem sido tratado como um Padim Ciço", afirma o cientista político Leôncio Martins Rodrigues
Lula é mais teatro que ação, diz intelectual
FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Estudioso dos políticos e das
classes trabalhadoras, o cientista
político Leôncio Martins Rodrigues, 69, vê um "descompasso"
entre a "capacidade teatral" e a
"capacidade de execução" do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
mas ressalva que ainda é muito
cedo para julgamentos definitivos: "Apenas julgo que muito do
que se propõe não sairá do papel".
Comunista de orientação trotskista na juventude, Leôncio hoje
se autoclassifica como "um liberal
no sentido dado ao termo nos Estados Unidos, não com a conotação pejorativa empregada aqui à
expressão neoliberal". Ao analisar
o primeiro mês do governo Lula,
acredita que o PT seguiu o único
caminho possível ao fazer acordos à direita, com políticos como
José Sarney (PMDB-AP): "A esquerda mais radical imagina, ingenuamente, que segmentos dominantes da sociedade ficariam
assistindo, de braços cruzados,
Lula levar o país para a esquerda".
Leôncio vê "elementos de semelhança" entre o relacionamento
de Lula com o Congresso e aquele
mantido por Fernando Henrique
Cardoso. "Eu acho até que Lula
tem condições de montar um rolo
compressor mais forte que do que
o PT e a oposição acusavam o Fernando Henrique de fazer."
Para o cientista político, a figura
do presidente da República tem se
sobreposto à imagem do governo
-"entre os pobres, tem sido tratado como um Padim Ciço"- a
exemplo do que ocorreu com Fernando Collor de Mello (90-92).
"O Collor começou se sobrepondo aos partidos e ao Congresso e acabou mal. Claro que o Lula
não é o Collor, mas estou constatando o fato: há uma sobrevalorização da figura do Lula. Por enquanto é um fato a constatar e observar seu desenvolvimento." A
seguir, trechos da entrevista:
Folha - Qual é a sua avaliação sobre o novo Congresso? É melhor ou
pior do que o anterior?
Leôncio Martins Rodrigues - É cedo para julgar. Um ponto que não
conta favoravelmente à nova legislatura é o alto número de parlamentares que já mudaram de legenda. Mas, embora o fato não
agregue pontos a favor da consistência doutrinária dos migrantes,
também não é necessariamente
prejudicial para governabilidade.
Folha - É a primeira vez que o partido do presidente eleito diretamente tem a maior bancada na Câmara depois do regime militar. Isso
tem algum significado?
Leôncio - Esse indicador favorece a governabilidade, mas diz
pouco sobre a qualidade da representação dos eleitores no Congresso. A não ser que sejamos petistas a ponto de dizer que, se o PT
elegeu mais deputados, isso significa necessariamente melhoria da
qualidade da representação.
Folha - A representação na Câmara melhora com a prática eleitoral?
Leôncio - O corpo político sempre é recrutado de um número
pequeno de pessoas em relação ao
eleitorado. São mais ou menos os
membros dos mesmos segmentos ocupacionais, ainda que variações ocorram no peso relativo
desses segmentos. Na imensa
maioria, são empresários, profissionais liberais, professores, funcionários da alta administração.
Muitos vêm de famílias que se
ocupam da política há muitas gerações. Mas, para que não se pense que se trata de mais um defeito
de nossa classe política, deve-se
dizer que isso ocorre em quase todos os países. As variáveis no recrutamento têm relações com os
partidos que obtêm mais votos
em cada eleição. Nessa última
eleição, como o PT elegeu mais
gente, o número de ex-sindicalistas é expressivo no Congresso,
além obviamente dos professores.
Se partidos de direita tivessem
vencido, seguramente haveria
mais empresários na Câmara.
Folha - Não estaria havendo um
volume excessivo de acordos para
divisão dos postos de comando do
Congresso Nacional?
Leôncio - Sim, tal como o PT
acusava o governo de FHC. Mas
entendo que isso faz parte do jogo
político dentro do sistema da democracia pluripartidária brasileira. Não adianta dizer "que vergonha esses nossos políticos". Com
fragmentação partidária, não é
possível governar sem acordo.
Desse ponto de vista, é uma crítica
um tanto puritana feita pela esquerda petista apontar o acordo
de Lula com Sarney e outros partidos "de direita" como traição
aos ideais petistas originais.
Mas não deixa de ser verdade
que essas críticas encontram muito fundamento diante do comportamento anterior do partido.
Se condutas radicais anteriores,
como votar contra a atual Constituição, não tivessem ocorrido,
ninguém poderia acusar o PT de
traição aos princípios "socialistas". Mas não adianta ficar olhando para o passado. Vendo a questão como ela se coloca para o futuro, todo partido que quiser governar tem que buscar acordos com
o centro e/ou com a direita. Seria
impossível governar só com a esquerda. Finalmente, Lula não foi
eleito para lançar as bases da
construção do socialismo, mas
para realizar o que se poderia dizer, de modo um tanto vago, um
"bom governo" e, a partir daí, tentar novas vitórias eleitorais.
Folha - A salada nos acordos para
distribuição do poder no Congresso não é desmoralizante para a democracia e para os partidos?
Leôncio - Sim, mas qual a alternativa? A salada partidária seria
menos variada se um partido (ou
um coligação de partidos de apenas uma tendência ideológica)
obtivesse a maioria das cadeiras
no Congresso (para não falarmos
das Assembléias Legislativas). Será que isso seria melhor para a democracia brasileira?
Folha - Seria?
Leôncio - Esse hipotético partido
hegemônico teria mais condições
de impor suas propostas. Isso implicaria uma diminuição do consenso que poderia levar a um radicalismo, de esquerda ou direita,
que exacerbaria o clima político.
A esquerda mais radical imagina, ingenuamente, que segmentos dominantes da sociedade (como empresários, militares e as
classes médias) ficariam assistindo de braços cruzados Lula levar
o país para a esquerda. O nosso
pluripartidarismo estimula a busca do consenso, o que leva à diminuição do extremismo.
Folha - O relacionamento inicial
do governo Lula com o Congresso é
semelhante ao mantido por FHC?
Leôncio - Há elementos de semelhança, embora o estilo seja diferente. Não há como escapar dessa
tentativa de bom relacionamento
com o Legislativo. Eu acho até que
Lula tem condições de montar
um rolo compressor mais forte
que o PT e a oposição acusavam
Fernando Henrique de fazer.
Folha - Numericamente a base de
apoio ao Planalto tem hoje menos
deputados que nos anos FHC.
Leôncio - É verdade. Só que já há
a predisposição de adesão de parte do PMDB e de outros partidos.
A impressão que tenho é que, nesse aspecto, o Lula obteve mais do
que se esperaria de um partido
"de esquerda".
Folha - Por quê?
Leôncio - Pelo enorme apoio que
o Lula encontra entre todos os setores da sociedade. Entre os pobres, tem sido tratado como um
Padim Ciço. No momento, o Lula
está sendo mais julgado pelas
ações de teatro, de palanque, de
candidato, do que pelas suas realizações governamentais. Sei que é
cedo para um julgamento nessa
área. Quero apenas constatar que
o apoio tem vindo mais da figura,
do carisma do candidato e das
promessas do que das realizações.
No geral, até agora, há um descompasso entre a capacidade teatral do Lula e a sua capacidade de
execução. A capacidade teatral é
maior -embora o governo esteja
ainda no começo e seja preciso reconhecer o enorme talento do
presidente de ficar no centro dos
holofotes, até mesmo em escala
internacional. Não acho que isso
seja necessariamente mal para o
país. Apenas julgo que muito do
que se propõe não sairá do papel.
Folha - O sr. está pessimista em
relação ao governo Lula?
Leôncio - Estou. Olha, estou torcendo muito para que dê certo.
Tenho um certo receio da partidarização da administração pública. Vencer eleições para o Executivo implica uma espécie de
"colonização" do Estado, expressa na distribuição de cargos para
os membros das cúpulas superiores dos partidos e para os amigos.
Isso sempre aconteceu. No caso
do PT, um partido mais ideológico e cujos membros vieram mais
de baixo, a ocupação do Estado
parece mais acentuada. O fator
ideológico pesa demais sobre a
competência. Por exemplo, o Ministério do Trabalho, como acusam sindicalistas de outras tendências, foi quase inteiramente
entregue aos quadros da CUT.
Folha - Como é possível resolver
esse tipo de "ocupação do Estado"
pela classe política?
Leôncio - Em todos os países isso
ocorre, por vias autoritárias ou
democráticas. Em países como o
Brasil, onde o Estado é um grande
empregador e um meio de ascensão social e econômica -além da
ascensão política-, a luta por
cargos na burocracia pública,
com o enorme excesso de mordomias que oferece, é mais acirrada.
Folha - Há possibilidade de mudança nesse padrão?
Leôncio - Alguma mudança vem
ocorrendo. Especialmente no Sudeste e Sul, onde a chamada "sociedade civil" é comparativamente mais forte do que nas outras regiões. Essa mudança se caracteriza principalmente por uma transformação na composição da elite
política, com a entrada de pessoas
saídas das classes médias.
Nesse sentido, os sindicatos têm
sido trampolins importantes de
ascensão política para os que vêm
das classes trabalhadoras ou das
classes médias. O caso de Lula é
paradigmático, mas está longe de
ser o único. Provavelmente, a longo prazo, a melhoria do padrão de
vida da população, o aumento do
grau de escolaridade dos eleitores
devem proporcionar melhores
escolhas e pressionar por reformas. A intolerância com os corruptos e incompetentes tenderá a
ser maior. Facilitará o aparecimento de novos líderes. Não quero dizer que serão sempre mais
honestos que os outros, mas vão
complicar o jogo partidário porque terão compromissos com outros segmentos da sociedade.
Folha - O processo é demorado.
Não existem atalhos?
Leôncio - Uma ruptura com a ordem institucional não deu certo
em parte nenhuma. Os militares
aqui poderiam ter feito muita coisa e não fizeram. Os bolcheviques,
na União Soviética, proclamaram
que iam melhorar tudo e pioraram tudo. As promessas de reformulação social total e de construção de uma "nova sociedade"
sempre acabam mal.
Folha - Qual a sua expectativa para os quatro anos do governo Lula?
Leôncio - O governo Lula pode
ser qualquer coisa: muito bom,
muito ruim... ou mais ou menos.
O que está havendo é uma enorme dominação da figura do Lula
sobre todo o sistema político, como há muito não ocorria.
Folha - É bom isso?
Leôncio - Não sei. Depende de
como ele vai usar isso. No momento, com a avaliação tão boa,
ninguém ousa se opor ao presidente. Lula é o centro de tudo,
dentro do partido dele e fora. Nos
casos Sarney, Itamar, FHC não foi
assim: não eram figuras tão carismáticas. Dependiam muito de
seus partidos. Collor começou se
sobrepondo aos partidos e ao
Congresso e acabou mal. Claro
que Lula não é Collor, mas estou
constatando o fato: há uma sobrevalorização da figura do Lula.
Folha - O sr. falou ontem entre o
descompasso entre a propaganda
e a capacidade de ação do governo.
Como isso se dá?
Leôncio - O Lula foi a Davos e defendeu uma política para acabar
com a miséria no mundo. Trata-se de uma pretensão monumental. É bom que ele chame a atenção para os pobres, mas é óbvio
que eliminar a pobreza não vai
depender dele nem do Brasil.
Folha - Como avalia o Conselho
de Desenvolvimento Social?
Leôncio - Não tenho opinião ainda. É difícil prognosticar sua eficiência. É visível que o Lula está
pondo muita ficha nas forças ditas sociais, até mesmo porque foi
sindicalista e sua experiência parlamentar é pequena. Parece tentado a correr por fora do Congresso.
Isso é bom? É mal? Se o contato
com a "sociedade civil" for para
coletar informações, para ouvi-la,
pode não causar muito estrago.
Texto Anterior: Investigação: Silveirinha fez saque de R$ 220 mil no Rio Próximo Texto: Frases Índice
|