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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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Seca limita intenções do projeto

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A seca que há dois anos afeta o semi-árido nordestino -priorizado pelo governo para implementação do Fome Zero- e a persistência da escassez de chuvas este ano impossibilitam um dos objetivos iniciais do projeto: usar a distribuição do benefício de R$ 50 para incentivar as economias locais, gerando emprego e renda.
Segundo Walter Belik, um dos autores do projeto ao lado do ministro José Graziano (Segurança Alimentar e Combate à Fome), um dos objetivos da distribuição dos cartões do Fome Zero é fazer "uma ponte" entre os produtores agrícolas locais e pessoas que não tenham condições de adquirir seus produtos, incentivando a economia dos municípios atendidos. "O problema da fome no Brasil não é de oferta [de alimentos", e sim de demanda", ele diz.
O sindicalista Luiz Marinho, presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), disse à Folha na última quarta-feira concordar com o argumento de Belik.
O problema é que a região definida pelo governo como pólo inicial de implementação do projeto -o semi-árido, inicialmente em Guaribas e Acauã, no Piauí- não atende a essas premissas.
"Há um problema sério de produção, de oferta de produtos lá [no Nordeste]", diz o engenheiro agrônomo Augusto Gameiro, da Esalq/USP (Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz").
É isso que leva o próprio secretário de Desenvolvimento Rural do Piauí, Sérgio Vilela, filiado ao PT, a dizer que ao menos nesse primeiro ano a realização do programa no semi-árido nordestino será uma ação compensatória, assistencialista.
"No presente momento, temos uma situação de despreparo para atender essa demanda gerada com o Cartão-Alimentação", diz.
"Como essa demanda que surgiu, e que vai surgir com a ampliação dos municípios atendidos, não existia, e as condições climáticas são muito irregulares nessa região, não existe uma estrutura de abastecimento que seja capaz de atender às necessidades que a demanda está criando", afirma.
Para Vilela, "como a própria produção local depende da natureza, e no semi-árido as chuvas estão acabando, só choverá mais no máximo o mês de março e um pouco talvez em abril, não é possível sequer produzir culturas de ciclo curto, como é o caso do feijão". Daí que o incentivo à produção local até o próximo "inverno" (período de chuvas, que vai de dezembro a março) fique limitada.

Produção perdida
Segundo José Antônio Marengo, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), "modelos apontam para deficiência de chuva" em 2003, o que mantém a situação de 2001 e 2002. Tudo somado, ele diz, "teria que ter bastante chuva para os solos se recuperarem".
O diagnóstico é compartilhado por quem conhece a região. Gilberto José de Souza, 34, é professor primário pela manhã e agricultor à tarde, além de membro do comitê gestor do Fome Zero em Acauã. Casado com Leusa e pai de Jeanderson, se diz privilegiado por ter pai e mãe vivos e aposentados, cada um recebendo um salário mínimo do INSS.
Souza diz que, por causa da seca, "a produção está quase toda perdida". Dividindo uma plantação de 5 hectares de milho com o pai, diz que "em ano bom" tira 100 sacos. Ano passado colheu 15. "Esse ano está pior", conclui. Os R$ 50 do Fome Zero, de cuja gestão participa, são para ele "uma coisa paliativa".
Em Guaribas, José da Silveira Bastos, o Zuza, 52, também agricultor e membro do comitê do programa lá, diz que "a seca foi grande; muita coisa foi perdida".
Zuza afirma que a maioria dos beneficiados em Guaribas gasta os R$ 50 com arroz, que vem segundo ele do Maranhão, e óleo em lata. Souza diz que, em Acauã também, o gasto é principalmente com arroz.
O pesquisador Augusto Gameiro diz que os R$ 50 distribuídos pelo Fome Zero são "a melhor medida emergencial". Mas diz que há um problema nas pretensões de estímulo à economia local. "Você vai dar R$ 50 para uma família lá, eles vão comprar de onde? Pode ser que seja mais barato comprar o arroz daqui que o de lá. Será que esses R$ 50 vão estimular a produção local? Você tem uma certa inelasticidade na oferta de produtos agrícolas. De curto prazo, é impossível. No longo prazo, até pode ter alguma influência."


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