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São Paulo, segunda-feira, 02 de junho de 2003

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ENTREVISTAS DA 2ª

HENRY STEINER

Especialista em direitos humanos de Harvard crê no combate à pobreza para enfraquecer extremismo

Guerra contra o terror produz retrocesso a liberdades civis

MARIA BRANT
DA REDAÇÃO

A chamada guerra contra o terrorismo, declarada pelos EUA após os atentados de 11 de setembro de 2001, produziu, dentro do país, um retrocesso no que diz respeito às proteções aos direitos humanos -ou liberdades civis, já que o termo só é usado pelos americanos para se referir a "problemas de outros povos".
A análise é de Henry Steiner, professor da Faculdade de Direito da Universidade Harvard e uma das maiores autoridades em direitos humanos nos EUA.
O mais problemático, afirmou, é que, diferentemente de outras guerras, não é possível dizer o que marcaria o fim do combate ao terror. "É preciso, portanto, ser triplamente cuidadoso quanto ao que você está fazendo com a sua própria sociedade no processo."
Leia trechos de entrevista que Steiner deu à Folha, na última quarta-feira, em São Paulo, quando participou do 3º Colóquio Internacional de Direitos Humanos, promovido pela Universidade Columbia (Nova York) e pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
 

Folha - Qual é a influência do 11 de setembro, da chamada guerra contra o terrorismo, sobre o movimento pelos direitos humanos?
Henry Steiner -
Essa experiência ainda é muito recente para sabermos como as coisas vão se desenvolver. Acho que [o 11 de setembro] mudou muita coisa, por um período muito longo.
É interessante que os EUA quase nunca falem de direitos humanos internamente. Temos nossa própria tradição constitucional e falamos de liberdades civis e direitos civis. Direitos humanos são problemas de outros povos.
Mas o primeiro dever de um governo é levar um grau significativo de segurança a seu povo.

Folha - Os EUA, contudo, fazem intervenções em outros países em nome da democracia, do respeito aos direitos e às liberdades civis da população, mas, ao mesmo tempo, não aplicam esses princípios, como é o caso em Guantánamo.
Steiner -
Você tem razão. Temos uma tradição e gostamos de nos ver como autores dela, apesar de haver antecedentes europeus para nossas idéias. Fomos melhorando aspectos dessa tradição até poucos anos atrás. Não éramos exatamente uma democracia nos termos atuais até o início do século 20. Mulheres não podiam votar até 1919, tivemos discriminação racial até os anos 60 e 70. Mas avançamos. Somos uma democracia melhor do que éramos.
Os últimos acontecimentos, são, portanto, um golpe tremendo. Além disso, ocorrem em um contexto em que temos um governo muito conservador, que tem uma opinião sobre o escopo das liberdades civis muito diferente de governos anteriores.
Acho que fomos mais longe do que deveríamos. A Suprema Corte ainda tem de decidir a respeito de algumas questões. Acabou de tomar uma decisão envolvendo julgamentos não públicos para estrangeiros detidos no país e restringiu até certo ponto o direito de defesa. E os tribunais dizem que não podem controlar o que está ocorrendo em Guantánamo porque Guantánamo não é parte dos EUA. Tudo isso é muito perigoso.
Quase inevitavelmente, os tribunais cedem até certo ponto ao Executivo em momentos de medo e emergência. E o governo [dos EUA] está agindo, em parte, com base nesse medo.
É muito difícil para pessoas que não são militares e não fazem parte das forças de segurança dizer que todas essas preocupações são totalmente injustificadas. Vemos ataques terroristas ocorrendo em outros países frequentemente: temos de tomar medidas de segurança. Mas temos de fazê-lo e levar em conta as proteções aos direitos e às liberdades civis e fazer o menor número possível de invasões para atingir a meta de segurança. Nosso governo não fez isso. Foi mais longe do que deveria.
O mais problemático é que a Primeira e a Segunda Guerra acabaram. Mas é pouco claro o que significa "o fim do terrorismo". Essa situação pode durar cinco anos, 50 anos, mas também pode ser o mundo no qual nós e nossos filhos e nossos netos vão viver. É preciso, portanto, ser triplamente cuidadoso quanto ao que você está fazendo com a sua própria sociedade no processo.
O que dá medo em algumas dessas novas leis é que elas acabam com proteções muito fundamentais e criam coisas terríveis, como julgamentos secretos. Quando você tira alguns desses direitos, aumenta a probabilidade de haver decisões ruins e equivocadas pela burocracia das agências de inteligência e policial.

Folha - Como as ações desse governo têm afetado o movimento pelos direitos humanos? Houve a guerra no Iraque, há a relutância dos EUA em participar do TPI (Tribunal Penal Internacional)...
Steiner -
Os EUA desempenharam papel vital no desenvolvimento do movimento pelos direitos humanos, mesmo sem ter assinado tantos tratados quanto outros países -e alguns dos piores assinaram tratados como o Congo. Mas demos um enorme impulso no começo, fomos vitais para avançar com o movimento pelos direitos humanos nos anos 40. Nos anos 50 e 60, nos tornamos menos envolvidos. Mas, a partir de Jimmy Carter, os direitos humanos se tornaram uma parte muito ativa das críticas internas nos EUA a respeito da política externa americana.
Além disso, nosso Departamento de Estado produz anualmente um relatório sobre a situação dos direitos humanos no mundo. Ele já foi usado de forma muito injusta, pois criticávamos todos os nossos inimigos, mas não nossos aliados. Isso mudou. Hoje os grupos de defesa dos direitos humanos, que analisam esses relatórios cuidadosamente, dizem que eles são precisos, apesar de podermos ser incoerentes com eles em nossa política externa.
Por outro lado, nosso histórico é cheio de hipocrisia e movimentos para apoiar aliados culpados de violações extremas aos direitos humanos. Para nós, é impossível sermos puros nessas questões -como a Dinamarca ou a Noruega, que mantêm posturas de direitos humanos mais puras.
Mas, internamente, apesar do que tem acontecido nos últimos anos, somos um exemplo muito importante. Permanecemos sendo uma sociedade que respeita muito algumas normas de direitos humanos fundamentais.

Folha - E o TPI?
Steiner -
No caso de Kosovo, agimos, a Otan (aliança militar ocidental) agiu, passando por cima do Conselho de Segurança -tínhamos medo de um veto da Rússia, por suas ligações com a Sérvia na época, e de outro veto.
Mas há sempre motivações misturadas. Nosso governo não é mais puro que o governo brasileiro ou que nenhum outro governo. Mas, em Kosovo, entramos basicamente por medo de que houvesse uma continuação do que acontecera na Bósnia. Nunca saberemos o que teria acontecido se não tivéssemos entrado.
Acho ótimo que tenhamos agido daquela forma, apesar de sempre haver problemas quanto ao que acontece depois. Às vezes, países devem intervir para evitar violações dos direitos humanos.
No caso do TPI, não concordo com o nosso governo. Em grande parte, a oposição ao tribunal se deve à posição conservadora do atual governo, mas acho que os americanos têm muitas reservas, por suas tradições, quanto a ceder sua soberania a respeito dessas questões, mais que os europeus.
É quase inconcebível que a população ou políticos americanos se disponham a abrir mão de grande parte de sua autonomia e dá-la ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Está além da imaginação americana, particularmente como uma potência hegemônica. Acho que deveríamos ter participado do TPI. Lamento que não tenhamos participado.

Folha - Qual é a principal vitória e o principal fracasso do movimento pelos direitos humanos hoje?
Steiner -
Os fracassos são muito óbvios. O movimento fracassou em impedir o genocídio, há hipocrisia por parte de muitos países.
Mas um dos maiores triunfos foi tornar o discurso dos direitos humanos uma parte do discurso mundial. Pessoas o conhecem em todos os países, mesmo naqueles que estão hoje muito distantes do mundo dos direitos humanos, como a China. Houve a disseminação da idéia de que há um valor individual independente, mesmo em sociedades organizadas de forma muito mais coletivista que a nossa. Acho que essa é uma realização desse movimento, que é hoje universal e, portanto, enfrenta muito mais conflitos, cultural e politicamente, do que quando era principalmente ocidental.
Mas esses são conflitos que devemos acolher com satisfação. Se não existissem, o movimento seria irrelevante. Quando a China reclama, significa que está no movimento pelos direitos humanos. É muito diferente se ela disser: "Não reconhecemos esse movimento, é um artifício ocidental".

Folha - E qual seria o maior desafio a esse movimento?
Steiner -
É o de dar as pessoas alguma forma de esperança que enfraqueça movimentos em direção ao extremismo. Para isso, combater a pobreza é mais fundamental.
O movimento pelos direitos humanos tem de enfatizar a necessidade de combinar o desenvolvimento social e econômico com um sentimento de igual valor entre as pessoas e de uma participação política ampla. Os direitos humanos não são um campo separado: não é a alçada de ativistas dos direitos humanos, mas de economistas, planejadores sociais, governos, sociólogos.



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