São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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Depuração no Senado vai parar, diz antropóloga

Alan Marques/Folha Imagem
A antroppóloga Carla Costa Teixeira, professora da UnB


MARCELO BERABA
DIRETOR DA SUCURSAL DO RIO

O processo de depuração do Senado não deve continuar. Ele se encerra com a cassação do empresário Luiz Estevão (PMDB-DF), consumada quarta-feira. Essa é a opinião da antropóloga Carla Costa Teixeira, 38, professora da UnB (Universidade de Brasília) e especializada em antropologia da política.
Carla Teixeira vem estudando os processos de cassação de parlamentares por quebra do decoro desde 1993. Na sua opinião, a cassação de Luiz Estevão só foi possível graças à combinação de quatro fatores: o trabalho investigativo da imprensa, maior do que durante a CPI do Orçamento (1993), a agilidade do Ministério Público, o contexto político de enfrentamento entre o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, e o presidente do PMDB, Jader Barbalho, e a defesa inadequada, fria e arrogante do ex-senador.
Carla Teixeira tem o mestrado em Antropologia no Museu Nacional, da UFRJ, e o doutorado pela UnB. Sua tese de doutorado virou o livro "A Honra da Política", editado pela Relume Dumará. Ela analisa vários processos de cassações, principalmente os originados na CPI do Orçamento, e mostra que o julgamento do decoro parlamentar não é uma questão jurídica, mas política.
Para a antropóloga, o Legislativo, principalmente a Câmara dos Deputados, é muito ágil para punir, mas lento para mudar as regras que permitem a corrupção e a quebra do decoro. "Você cospe o indivíduo, mas a prática continua sendo perpetuada."
Esta entrevista foi dada sexta-feira, por telefone.

Folha - Por que Luiz Estevão foi cassado?
Carla Costa Teixeira -
Eu poderia elencar alguns fatores. Primeiro, a imprensa. O papel que a imprensa teve nesse processo foi diferente daquele nas cassações dos deputados na CPI do Orçamento. Naquela ocasião, a imprensa atuou como uma caixa de ressonância da CPI, vazando documentos. A imprensa produziu poucas "provas". No caso do Luiz Estevão, ele teve de se defender, praticamente todas as semanas, de documentos, bilhetes e disquetes que a imprensa ia trazendo. Esse perfil de investigação nós havíamos visto no caso do Collor. Na CPI do Orçamento não se verificou. Agora voltou muito forte.

Folha - O ex-senador reclamou da imprensa. Você acha que houve parcialidade na cobertura?
Teixeira -
Não, não houve. E isso aponta para outro elemento: a dificuldade que Luiz Estevão teve de politizar o processo. A tentativa de acusar a imprensa de perseguição foi como se tentasse dizer: "Não se trata de nada que eu tenha feito. Isso não importa. O que os jornais estão querendo é me tirar do Senado". Só que não colou. A sua postura não foi adequada.
A grande chance dele, e que ele não soube explorar de maneira feliz, era o fato de ter sido o senador mais bem votado de Brasília, com quase meio milhão de votos.
Lembro o Ricardo Fiúza (PFL-PE, acusado pela CPI do Orçamento , mas absolvido pelo plenário em 94), que conseguiu esvaziar o relatório do Hélio Bicudo (PT-SP) contra ele, colocando como uma questão ideológica. O Fiúza foi muito perspicaz na politização e foi absolvido. Afinal de contas, o processo de cassação é um processo político. Luiz Estevão não foi hábil nesse sentido.
O que me chamou muito a atenção desde o começo foi o semblante do Luiz Estevão. Ele tem um ar frio, distante. Isso soou como uma certa prepotência. Ele percebeu, mas tentou virar o jogo muito tarde, com um discurso emocional que não convenceu. O Ibsen Pinheiro (PMDB-RS, cassado em 94) teve inicialmente essa postura de distância, de frieza, juridicista. Eu vi a última defesa do Ibsen. E ele se descontrolou. Eu não vi o Luiz Estevão se descontrolar uma vez.

Folha - Que outros fatores contribuíram para a cassação?
Teixeira -
Houve, ainda, na questão política, outro elemento importante: o embate entre ACM (presidente do Senado) e Jader Barbalho (senador, presidente do PMDB). Houve uma tentativa do PMDB, que não colou, de dizer que o que estava em jogo era a hegemonia do ACM no Senado.
Outro ponto importante foi a Procuradoria da República. Ela foi de uma agilidade impressionante na busca de provas e na articulação. A junção das modificações na Constituinte de 88, dando mais poder ao Ministério Público, com a renovação dos que exercem a função de procurador, deu uma dinâmica muito forte e eficaz. O Ministério Público virou um sujeito político, com uma força que não tinha antes.

Folha - As mesmas acusações de desvio de dinheiro e de sociedade com a Incal poderiam ter um desfecho diferente em outro contexto político, com outra imprensa e outro Ministério Público?
Teixeira -
Poderiam dar em nada. O que caracteriza o decoro, muito mais do que honra, é que ele é sempre definido a cada contexto. O que é considerado indecoroso hoje? Em 1949, o Barreto Pinto (deputado Edmundo Barreto Pinto, PTB-DF) foi cassado porque posou de cueca (em 1946, para a revista "O Cruzeiro"). Hoje, aparecem coisas piores e nada acontece. O decoro só ganha um conteúdo quando ele é ancorado num contexto particular.
Sérgio Naya foi cassado (em 98) porque contou uma bravata no interior (gravada em vídeo) e não porque oito pessoas morreram quando o prédio construído por ele caiu. Fica esta questão: o que é do campo da política e o que é do campo da Justiça? Ele até hoje responde ao processo na Justiça, mas já está cassado. Foi o que aconteceu com o Collor, que foi cassado no mundo da política e absolvido na Justiça. Existe, portanto, uma autonomia relativa entre estes dois campos.
O que faz surgir a discussão do decoro é algo que tenha uma repercussão muito grande na sociedade.

Folha - Pode-se dizer que exista uma ética na política brasileira?
Teixeira -
Nós temos um procedimento em relação à quebra de decoro político muito mais rigoroso, e isto pode até surpreender, do que outras democracias que nós admiramos. Temos uma agilidade política muito grande para punir. Todo o movimento no Congresso norte-americano não é para cassar, não é para expulsar. Eles criam todas as facilidades para que o deputado abra mão do mandato, para evitar esta situação constrangedora de expulsar um membro do Legislativo.

Folha - A que você atribui esta rapidez de punição no Congresso brasileiro?
Teixeira -
Nós temos um senso comum negativo dos políticos. Político é corrupto, só visa seus próprios interesses. Essa imagem é tão forte que, ao surgir uma acusação ou um clamor público contra um político, o movimento é de expulsão do acusado o mais rápido possível, sob pena de desonrar o grupo inteiro mais ainda. Exatamente pela fama da impunidade, há uma urgência em excluir aquele indivíduo.
E na maioria das vezes não há a mesma urgência em se alterar as regras que permitiram que ele fizesse aquilo. Então, você cospe o indivíduo, mas a prática continua sendo perpetuada. A estrutura institucional que permite aquele padrão de conduta permanece.

Folha - O que a cassação do Luiz Estevão simbolizou para a sociedade e para os políticos?
Teixeira -
Para a sociedade, o que fica é um sentimento um pouco ambíguo. Uma certa satisfação de ver alguém do porte dele, um senador da República que cometeu um crime, ser expulso do Senado. E existe um outro sentimento que diz que isso não é nada diante do que ele fez. Será que ele vai devolver o dinheiro? Justamente aí termina a esfera da política e começa a da Justiça. Isso gera um certo desencantamento entre o cidadão normal e os políticos. Institucionalmente, não é mais função dos políticos, mas para o cidadão fica a pergunta: tudo bem, foi cassado, mas, e daí?
O Senado interpretou que Luiz Estevão não poderia ser preso enquanto a sua expulsão não fosse publicada no "Diário Oficial". Mas o Hildebrando não esperou pelo "Diário Oficial", foi preso antes. O símbolo do senador sendo cassado e imediatamente preso e levado para uma prisão comum porque não tem nível superior seria excessivo para o Senado. Mas para a população seria o máximo. É o símbolo maior da não-impunidade.

Folha - Você acha que a cassação do Luiz Estevão foi um processo isolado ou o Senado deve continuar a depuração interna?
Teixeira -
Foi isolado. A minha impressão é que foi um processo isolado. A briga do ACM com o Jader e a incapacidade do Luiz Estevão de politizar a sua defesa. É algo a observar, mas acho que talvez tenha o efeito contrário no Senado. Agora chega. Já demos a nossa parte, já cortamos na própria carne. É sempre esta a metáfora. O Luiz Estevão vai fechar as portas para outras cassações. Agora, a próxima vai demorar.


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