São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

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ELIO GASPARI

A gorjeta tributária do PT

O professor José Graziano da Silva, um dos autores do programa "Fome Zero", do PT, qualifica a notícia segundo a qual seu partido propõe a instituição de um "imposto da gorjeta" como uma "deturpação" destinada a "denegrir a imagem do mais bem cotado pré-candidato à Presidência até o momento". Refere-se a Lula e aos seus 33% nas pesquisas eleitorais.
Segundo o professor, o que o PT propõe é uma "contribuição voluntária para os comensais dos restaurantes de luxo". Coisa "simbólica".
É conhecida a observação do primeiro-ministro inglês Clement Atlee, segundo a qual é pouco educado cobrar dos governantes suas promessas de candidatos, mas o professor Graziano exagera. Não quer que se cobre do PT nem mesmo aquilo que propõe antes da eleição.
Se Graziano for à página do Instituto Cidadania, do PT, encontrará o texto intitulado "Fome Zero: Sumário Executivo". Trata-se do projeto apresentado para discussão pública. Lá se lê que seus redatores propõem o combate à fome por meio de um fundo especial que redirecionará quatro impostos e mais o seguinte:
"A segunda fonte de recursos é a instituição de uma contribuição de 5% sobre despesas com alimentação em restaurantes de luxo (que seria uma maneira de envolver a população de renda mais alta no programa) e a elevação dos impostos sobre bens supérfluos, especialmente cigarros e bebidas alcoólicas".
Cadê o "voluntária"?
Na versão integral do "Fome Zero", também não há a expressão "voluntária". Pelo contrário. Nela estima-se que as famílias residentes nas regiões metropolitanas que ganham mais de 20 salários mínimos gastem R$ 318,3 milhões por mês comendo fora de casa e, pelas suas contas, conclui: "A estimativa de 5% deste valor corresponde a R$ 208,7 milhões anuais (em reais de hoje)". Segundo o "Fome Zero", esse grupo corresponde a "10% das famílias ricas do país". Chamar uma família que ganha R$ 3.601 de "rica" é um caso inédito de distributivismo retórico. Juntá-la a quem ganha qualquer quantia acima de R$ 3.600 é ato inédito de miscigenação social.
Na conta dos autores do "Fome Zero", quem ganha mais de R$ 3.601 pode ir comer em restaurante de luxo. Ou nunca viram uma conta de restaurante de luxo ou nunca viram uma família que vive com esse dinheiro. Se nela houver quatro pessoas, pagará pelo menos R$ 400 pela comida. Mais o serviço, serão R$ 440. Com o imposto da gorjeta, R$ 462. Terá detonado 13% de sua renda mensal numa só refeição.
O doutor Graziano diz que a contribuição é voluntária, mas na conta do "Fome Zero" entrou todo mundo na panela e com isso projetou-se uma arrecadação de R$ 208,7 milhões. Na sua estimativa, todas as famílias foram a restaurantes onde deve vigorar a taxa, e ninguém se recusou a pagá-la.
Quando a maluquice foi colocada no ridículo lugar que lhe cabe, o professor saiu-se com a "contribuição voluntária". Segundo ele, "quem não quiser pagar os 5% pode pedir ao garçom para retirar da conta".
Mesmo na versão "light", a noção de ato de vontade da pedagogia social petista funciona assim: o garçom traz a conta com um acréscimo de 5%, e o cidadão, voluntariamente, paga. Chamando-se a conta pelo nome, é mais uma tunga na classe média, disfarçada de medida contra os ricos. A turma do "Fome Zero" fala em restaurantes de luxo mas, pelas contas que fez, precisará avançar no prato da refeição dominical da classe média, que sai por cerca de R$ 50 por pessoa.
Um sujeito que ganha R$ 50 mil por mês e come cinco vezes por semana num restaurante de luxo (a R$ 100 a refeição) perderá R$ 110 com o imposto da gorjeta. Isso equivale a 0,22% de sua renda. A família de quatro pessoas e R$ 3.600 de renda comerá fora de casa só aos domingos, por R$ 200. Tomará uma mordida de R$ 44, equivalente a 1,22% de sua renda. Trata-se de um exemplo clássico de taxação regressiva.
Para quem já foi tapeado pelo dólar de R$ 1,20 e pelas promessas de taxas de crescimento do PIB superiores às da inflação, ter que escolher entre as velhas empulhações da ekipekonômica e as novas mistificações redistributivistas é no mínimo uma injustiça.
Serviço: o texto integral do programa "Fome Zero" não é tão tolo quanto a proposta do imposto da gorjeta. Ele pode ser capturado no seguinte endereço:
http://brnt5sp228.digiweb.com.br/download/Fome-Zero-Versao1-em-PDF.zip

Pagou calado

O governador do Espírito Santo, José Ignácio Ferreira, é um sábio. Foi autuado pela Receita Federal em R$ 600 mil e pagou em silêncio, sem reclamação nem recurso.
A cobrança relacionou-se com alguns milhões de reais que passaram pelas suas mãos sem que ele tivesse explicado de onde vinham.

Hospital BNDES

A equipe técnica do BNDES reage à idéia de emprestar seu dinheiro camarada a empresas de saúde privada que vão mal das pernas. Santa reação.
Primeiro, porque se trata de um mercado competitivo e são muitas as empresas que vão bem, obrigado. Emprestar dinheiro barato a empresários semi-arruinados equivale a premiar a inépcia.
Segundo, porque as empresas que passam por dificuldades tomaram centenas de milhões de reais emprestados à banca que lhes cobra os juros do doutor Armínio. Se receberem dinheiro do BNDES, a juros inferiores a 10%, os beneficiados serão os bancos que fizeram maus empréstimos. Eles que renegociem seus créditos e deixem o dinheiro da Viúva em paz.
Nos seus piores momentos, o BNDES foi acusado de ter um "hospital" para internar maganos falidos. Com créditos às empresas de medicina privada, ele finalmente poderia inaugurar uma diretoria hospitalar.
A Agência Nacional de Saúde Complementar e o Ministério da Saúde precisam entender que plano de saúde falido falido está. Da mesma forma, diretor de banco que emprestou dinheiro a cliente ruim que vá se explicar aos acionistas.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música, adora biscoitos e é viciada em Danoninhos de morango. Dedica-se à defesa dos desnutridos do idioma e resolveu conceder uma de suas bolsas de estudo aos diretores da Danone pela explicação que deram para a malandragem que vinham praticando ao venderem 170 gramas de biscoitos em pacotes onde a choldra supunha que houvesse 200 gramas. Os moços disseram o seguinte:
"O mercado de biscoitos conta, desde 1994, com inúmeros produtos, em diferentes gramaturas, texturas e formulações. (...) Os biscoitos maisena, "cream cracker" e água e sal das marcas Aymoré e Triunfo tiveram alterações na sua gramatura, passando para 180 e 170 gramas, respectivamente".
Depois de ter sido feito de boba comendo menos biscoitos pelo mesmo preço, Natasha descobriu que a turma da Danone deu-a por idiota a ponto de não perceber que usaram a expressão "gramatura" para não usar a palavra peso. Ela sugere que os danonetecas façam um novo comunicado dizendo assim:
"No interesse dos acionistas da empresa, seus sábios reduziram o peso dos pacotes de biscoitos para produzir dividendos e bônus de fim de ano à custa da boa fé da patuléia".
Tanto o dicionário Aurélio quanto o Houaiss associam a palavra "gramatura" apenas ao peso de um metro quadrado de papel. Nada a ver com a quantidade de gramas de um pacote de biscoitos.

Os juízes trabalham, e muito

Numa época em que o Poder Judiciário passa pela ressaca do efeito Lalau e os funcionários da Justiça de São Paulo se vêem obrigados a recorrer à greve para buscar salários decentes, é um prazer anunciar a publicação de um bom livro sobre o assunto. Chama-se "Acesso à Justiça" (edição da Fundação Konrad Adenauer), foi organizado pela professora Maria Tereza Sadek e reúne oito trabalhos sobre o assunto. Não é leitura divertida, mas dificilmente se sai dele com as mesmas idéias com que se entrou.
Nele aprende-se que o Judiciário brasileiro trabalha duro. Em 1990, recebia um processo para cada 40 habitantes. Em 1998, um processo para cada 22 habitantes. O número de processos julgados acompanhou essa variação, aumentando em 105%. No Rio Grande do Sul, a relação entre os processos abertos e os julgados é de 95%. Em São Paulo, a percentagem é de 78,9%, com 76 mil julgamentos. O Rio vai mal, com apenas 52,4%. O Maranhão tem o pior desempenho, com 23,6%. Em 1998, cada magistrado brasileiro julgou, em média, 704 processos. No pico, ficaram os juízes paulistas, gaúchos e catarinenses, cada um com mais de mil processos julgados. No vale, os baianos, com 31.
No reverso dessa medalha, há pelos menos 2.500 cargos de juiz sem provimento. No Rio, são mais de 200 e, em São Paulo, passam dos 500.
Os grandes números mostram que o Judiciário funciona melhor do que se pensa, mas a porca torce o rabo quando a professora Sadek ressalva que isso não indica que haja uma justiça melhor. O que há é o seguinte: "Poucos procurando muito e muitos procurando pouco".
Numa outra perspectiva, sobrecarregada de pleitos nos quais há partes mais interessadas em protelar do que em buscar decisões, a Justiça acaba se transformando numa mistura de auditoria com consultoria.
Um dos trabalhos mostra como os juizados especiais, para causas de valor inferior a 40 salários mínimos, tornaram-se uma iniciativa de razoável sucesso. No Amapá, por exemplo, o número de processos levados a esses juizados igualou-se aos da Justiça comum. Em São Paulo, no primeiro semestre do ano passado, estavam 322 mil, contra 278 mil ao longo de 1999. Pesquisando o juizado de Carapicuíba, em São Paulo, Alcir Desasso mostra que, se esses juizados não tiveram mais êxito, isso se deveu em parte à má vontade e ao boicote da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ainda não se pode dizer que o andar de baixo dispõe de um aparelho à altura de suas necessidades. Mesmo assim, percebe-se que, se não desmantelarem o Poder Judiciário, isso poderá até acontecer.

ENTREVISTA

Ciro Gomes
(43 anos, candidato a presidente da República pelo PPS)

Há dois anos, o senhor propôs uma rediscussão negociada para a dívida pública brasileira e foi tratado como um excêntrico. Como o senhor se sente agora, quando o FMI e a banca internacional estão oferecendo à Argentina novos prazos para o pagamento de sua dívida externa?
Se tivessem me chamado só de excêntrico, estaria tudo bem. Fui chamado de caloteiro, maluco, despreparado e novo Collor. Os banqueiros internacionais estão renegociando a dívida argentina porque não tem a selvageria da banca nacional. Quando Fernando Henrique Cardoso tomou posse, a dívida interna equivalia a 28% do PIB. Não se esqueça de que naquela época a Vale do Rio Doce, o sistema das teles e a rede de distribuição de energia valiam 80% da dívida. Pois vendemos o patrimônio, e a dívida equivale hoje a 52,5% do PIB. Os banqueiros sabem que essa situação é explosiva. Outro dia estive com um deles, dos maiores. Falei-lhe da necessidade dessa discussão. Ele respondeu que se trata de coisa inaceitável. Eu lhe perguntei o que teremos pela frente, e ele respondeu: "O caos". Perguntei-lhe então se não seria melhor conversar antes, como a banca internacional está conversando com a Argentina. Ele disse que é melhor negociar depois que houver o caos.
O que se poderia fazer para abrir essa discussão?
Abri-la. O único jornal que publicou minha proposta com fidelidade foi o "The New York Times". No Brasil, nenhum. Assistimos a uma interdição do debate. Quero lhe confessar que hoje em dia tenho medo de falar para a grande imprensa paulista. É medo mesmo. Como sei que não sou um sujeito medroso, acho que a gente deveria se perguntar o que está acontecendo com a imprensa quando um candidato a presidente fica com medo dos jornais. Eu digo que um acusado tem direito de defesa e publicam que defendo o encobrimento de irregularidades. Condeno a diluição de uma investigação e publicam que tento barrar a apuração dos fatos. Depois desmentem, quando desmentem. Tomemos outro exemplo, o das pesquisas. A cada 25 dias, a Sensus publica uma pesquisa nacional. Quem paga é a CNT, que é presidida por um suplente de senador do PFL mineiro. O Ibope publica outra pesquisa, paga pela CNI, que é presidida por outro deputado do PFL. Cada pesquisa dessas custa cerca de R$ 150 mil. Nelas, o governador Garotinho aparece com 14% e depois despenca para 9%, enquanto Roseana Sarney sai do Maranhão e aparece com 14%. É tudo fantasia.
O que o senhor propõe para mudar essa situação?
Proponho que se reflita em torno do seguinte:
A imprensa acha que está ajudando a democracia na maneira como cobre a divergência política? O que ela poderia fazer para reduzir o espaço das fofocas, aumentando o espaço dado à discussão dos temas, como segurança, saúde e educação?
As rádios e televisões acham que nada há além da opinião do governo e do entrevistado que eles vão achar na rua? Será que não existe uma maneira mais civilizada de apresentar o debate político?
No caso das pesquisas, se cada patrocinador dissesse quanto pagou e explicasse de onde saiu esse dinheiro, daríamos um bom passo.
Finalmente, proponho que se debata. Todo mundo com todo mundo. De minha parte, estou pronto para discutir temas da vida do povo com qualquer candidato ou com qualquer ministro do governo. É só marcar hora e lugar.



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