São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

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NO PLANALTO

Exército se embrulha em seus próprios papéis secretos

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Embora muitos não se dêem conta, o pescoço é uma das partes mais encantadoras do corpo humano. Graças à sua rotatividade, a cabeça pode analisar o mundo de vários ângulos, sem maniqueísmo.
Poucas verdades absolutas resistem a uma guinada de pescoço. Sobretudo quando se leva em conta que todo fato comporta pelo menos três versões: a minha, a sua e a verdadeira.
Há uma semana, a pretexto de festejar o Dia do Soldado, o general Gleuber Vieira, comandante do Exército, divulgou "ordem do dia" em que manifestou contrariedade em relação ao trabalho de um grupo de procuradores da República e da imprensa.
O Exército não gostou da apreensão de papéis secretos de seus órgãos de inteligência numa casa de Marabá (PA). Apreciou menos ainda a exposição dos documentos nas páginas da Folha.
A "ordem do dia" de Gleuber serviu para aplacar a irritação de integrantes do alto comando do Exército. Diz o texto, a certa altura: "[..." presenciamos nossa instituição, responsável constitucionalmente pela garantia da lei e da ordem, ser atingida pelos que têm o dever de fiscalizar o cumprimento dos preceitos legais, sob a busca insensata de efeitos da mídia".
Basta mover o pescoço para enxergar uma realidade diferente da que foi exposta na mensagem do Exército. Os procuradores alcançaram os documentos secretos porque a Justiça permitiu. A Folha manuseou-os porque, goste-se ou não, foram anexados a um inquérito que não corria em segredo de Justiça. Foram publicados em nome do sacrossanto interesse público.
Com a divulgação, a sociedade soube que a instituição "responsável constitucionalmente pela garantia da lei" guarda em suas gavetas papéis que, em plena alvorada democrática, ensinam agentes secretos a "arranhar direitos dos cidadãos", a tratar certos brasileiros como "forças adversas", passíveis de "eliminação", a falsear a identidade utilizando "documentos falsos", a arrombar propriedades fazendo com que o malfeito pareça coisa de "marginais", a maquiar prestações de contas de verbas subtraídas do bolso do contribuinte...
O Exército acha que foi vítima de um ato de força. "A violência manifesta-se, muitas vezes, sem o desembainhar de sabres", diz o texto assinado por Gleuber. "Ela vem sob a cobertura de causas nobres, em cujo abrigo muitos pregam e praticam a agressão à lei e à ordem constituída, ao arrepio dos interesses nacionais."
É de se perguntar: quem insultou a lei, os procuradores que entraram numa casa munidos de mandado judicial ou o Exército que, negando que ocupasse a propriedade, mantinha em suas dependências um ninho de espionagem travestido de falsa agência de notícias? Quem afrontou os interesses nacionais, o jornal que exerceu o dever de informar ou o Exército, que confunde o direito a um serviço de inteligência com o desejo de manter à sombra práticas incompatíveis com o Estado de Direito?
Em nota que antecedeu a ordem do dia do general Gleuber, o Exército havia assumido posição mais digna. Manifestara surpresa com o teor de alguns papéis. Prometera apurar, em inquérito, "eventuais transgressões" às suas diretrizes. Acenara até com a adoção de "imprescindíveis correções". Não se tem notícia, por ora, de nenhuma providência corretiva.
Em alusão indireta à tentativa do Ministério Público de localizar ossadas de guerrilheiros mortos no Araguaia, a mensagem do general Gleuber diz que se está negando, "em nome de um passado recente, o espírito de pacificação [..." que se propôs à nação".
Ora, não se está tratando da reabertura de nenhum confronto. Os guerrilheiros do PC do B foram, como se diz, à sorte das armas. Perderam. É do jogo. Para sorte do Exército, a história demonstra que o modelo preconizado pelos insurretos jaz sob os escombros do Muro de Berlim.
Mas não há pacificação capaz de suprimir o direito das famílias a uma cova cristã para os seus entes mortos. Não há pacificação que justifique a manutenção de um naco da história nos cofres do Estado.
E não se diga que inexistem arquivos. O próprio Exército reconheceu, em nota oficial: "Nos arquivos existentes, nada foi encontrado que pudesse indicar a localização de corpos". Não se compreende a insistência em conservar papéis velhos, de mais de duas décadas, já desclassificados por lei, longe dos olhos da sociedade. Trata-se de arquivo morto. O que dá sobrevida aos papéis é a intransigência do Exército.
Os militares crêem que escolheram a estrada correta. O diabo é que a graça da democracia está no fato de que a todos é dado o direito de tomar a contramão. O fascinante da atmosfera de liberdade plena é a prerrogativa concedida aos crentes de crer piamente na descrença.
O Exército, salvo prova em contrário, é composto de membros da espécie humana. E mesmo a mais perfeita das criaturas, quando postada diante do espelho, corre o risco de gargalhar de seus admiradores.
O homem, de resto, é um animal inviável. Seja ele militar, procurador da República ou jornalista. E a história demonstra que os direitos coletivos costumam terminar justamente onde começa a infalibilidade de autoridades que se julgam acima da lei.
Uma dúvida: o que foi feito daquele FHC loquaz? Onde está que não se pronuncia? Decerto o pescoço de Sua Excelência ainda não escolheu o ângulo mais conveniente.



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