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NO PLANALTO
Exército se embrulha em seus próprios papéis secretos
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Embora muitos não se dêem
conta, o pescoço é uma das
partes mais encantadoras do
corpo humano. Graças à sua rotatividade, a cabeça pode analisar o mundo de vários ângulos,
sem maniqueísmo.
Poucas verdades absolutas resistem a uma guinada de pescoço. Sobretudo quando se leva em
conta que todo fato comporta pelo menos três versões: a minha, a
sua e a verdadeira.
Há uma semana, a pretexto de
festejar o Dia do Soldado, o general Gleuber Vieira, comandante
do Exército, divulgou "ordem do
dia" em que manifestou contrariedade em relação ao trabalho
de um grupo de procuradores da
República e da imprensa.
O Exército não gostou da
apreensão de papéis secretos de
seus órgãos de inteligência numa
casa de Marabá (PA). Apreciou
menos ainda a exposição dos documentos nas páginas da Folha.
A "ordem do dia" de Gleuber
serviu para aplacar a irritação
de integrantes do alto comando
do Exército. Diz o texto, a certa
altura: "[..." presenciamos nossa
instituição, responsável constitucionalmente pela garantia da lei
e da ordem, ser atingida pelos
que têm o dever de fiscalizar o
cumprimento dos preceitos legais, sob a busca insensata de
efeitos da mídia".
Basta mover o pescoço para enxergar uma realidade diferente
da que foi exposta na mensagem
do Exército. Os procuradores alcançaram os documentos secretos porque a Justiça permitiu. A
Folha manuseou-os porque, goste-se ou não, foram anexados a
um inquérito que não corria em
segredo de Justiça. Foram publicados em nome do sacrossanto
interesse público.
Com a divulgação, a sociedade
soube que a instituição "responsável constitucionalmente pela
garantia da lei" guarda em suas
gavetas papéis que, em plena alvorada democrática, ensinam
agentes secretos a "arranhar direitos dos cidadãos", a tratar certos brasileiros como "forças adversas", passíveis de "eliminação", a falsear a identidade utilizando "documentos falsos", a arrombar propriedades fazendo
com que o malfeito pareça coisa
de "marginais", a maquiar prestações de contas de verbas subtraídas do bolso do contribuinte...
O Exército acha que foi vítima
de um ato de força. "A violência
manifesta-se, muitas vezes, sem o
desembainhar de sabres", diz o
texto assinado por Gleuber. "Ela
vem sob a cobertura de causas
nobres, em cujo abrigo muitos
pregam e praticam a agressão à
lei e à ordem constituída, ao arrepio dos interesses nacionais."
É de se perguntar: quem insultou a lei, os procuradores que entraram numa casa munidos de
mandado judicial ou o Exército
que, negando que ocupasse a
propriedade, mantinha em suas
dependências um ninho de espionagem travestido de falsa
agência de notícias? Quem
afrontou os interesses nacionais,
o jornal que exerceu o dever de
informar ou o Exército, que confunde o direito a um serviço de
inteligência com o desejo de
manter à sombra práticas incompatíveis com o Estado de Direito?
Em nota que antecedeu a ordem do dia do general Gleuber, o
Exército havia assumido posição
mais digna. Manifestara surpresa com o teor de alguns papéis.
Prometera apurar, em inquérito,
"eventuais transgressões" às suas
diretrizes. Acenara até com a
adoção de "imprescindíveis correções". Não se tem notícia, por
ora, de nenhuma providência
corretiva.
Em alusão indireta à tentativa
do Ministério Público de localizar ossadas de guerrilheiros mortos no Araguaia, a mensagem do
general Gleuber diz que se está
negando, "em nome de um passado recente, o espírito de pacificação [..." que se propôs à nação".
Ora, não se está tratando da
reabertura de nenhum confronto. Os guerrilheiros do PC do B
foram, como se diz, à sorte das
armas. Perderam. É do jogo. Para sorte do Exército, a história
demonstra que o modelo preconizado pelos insurretos jaz sob os
escombros do Muro de Berlim.
Mas não há pacificação capaz
de suprimir o direito das famílias
a uma cova cristã para os seus
entes mortos. Não há pacificação
que justifique a manutenção de
um naco da história nos cofres do
Estado.
E não se diga que inexistem arquivos. O próprio Exército reconheceu, em nota oficial: "Nos arquivos existentes, nada foi encontrado que pudesse indicar a
localização de corpos". Não se
compreende a insistência em
conservar papéis velhos, de mais
de duas décadas, já desclassificados por lei, longe dos olhos da sociedade. Trata-se de arquivo
morto. O que dá sobrevida aos
papéis é a intransigência do
Exército.
Os militares crêem que escolheram a estrada correta. O diabo é
que a graça da democracia está
no fato de que a todos é dado o
direito de tomar a contramão. O
fascinante da atmosfera de liberdade plena é a prerrogativa concedida aos crentes de crer piamente na descrença.
O Exército, salvo prova em
contrário, é composto de membros da espécie humana. E mesmo a mais perfeita das criaturas,
quando postada diante do espelho, corre o risco de gargalhar de
seus admiradores.
O homem, de resto, é um animal inviável. Seja ele militar,
procurador da República ou jornalista. E a história demonstra
que os direitos coletivos costumam terminar justamente onde
começa a infalibilidade de autoridades que se julgam acima da
lei.
Uma dúvida: o que foi feito daquele FHC loquaz? Onde está
que não se pronuncia? Decerto o
pescoço de Sua Excelência ainda
não escolheu o ângulo mais conveniente.
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