São Paulo, quarta-feira, 02 de outubro de 2002

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FOLCLORE POLÍTICO

Um crime político perfeito

RAPHAEL DE ALMEIDA MAGALHÃES

O ano era 1964. O mês era agosto. O Congresso Nacional se preparava para votar a emenda constitucional que prorrogaria por um ano o mandato do presidente Castello Branco, que deveria se extinguir em 1965, quando o sr. Jânio Quadros terminaria o seu mandato.
A articulação política pela prorrogação se fez entre os líderes da UDN no Congresso Nacional, a frente do senador Daniel Krieger e o deputado Bilac Pinto e os principais ministros do presidente, entre os quais o marechal Cordeiro de Faria e o general Golbery do Couto e Silva.
Quando o processo legislativo começou, o Carlos Lacerda estava na Europa, explicando o movimento que derrubara o presidente João Goulart. E este escriba eventual exercia o cargo de governador da Guanabara, de cujo governo o Helio Beltrão era secretário do Planejamento, além de candidato escolhido à sucessão estadual na eleição que se realizaria em 1965, coincidente com a eleição presidencial.
O presidente chamou-me, solene, ao Palácio. E me afirmou, peremptoriamente, ser contra a prorrogação de seu mandato. Tão contra que fizera uma carta ao senador Daniel Krieger manifestando sua discordância. Tinha-na como inconveniente do ponto de vista político e inaceitável do ponto de vista ético -uma violação aos princípios que inspiraram a intervenção de março. Assegurar a normalidade político-institucional do país seria garantir a realização da eleição presidencial de 1965. Comentei com ele que a sua carta era irrespondível e que, se as razões de conveniência política poderiam ser removidas, as razões éticas, estas eram absolutas e inamovíveis.
Antes da votação da emenda de prorrogação, o Carlos Lacerda, que era, antes da eclosão do movimento militar de 64, candidato escolhido em convenção pela UDN para disputar o pleito de 65, foi comigo e com o Helio Beltrão, a Brasília para uma reunião com a cúpula da UDN sob a liderança do senador Daniel Krieger. Interpelada, a bancada desconversou sobre a iniciativa da emenda bem como sobre sua posição diante da prorrogação. Mesmo os mais afirmativos parlamentares -do João Agripino ao Aliomar Baleeiro- foram reticentes.
Saímos de volta ao Rio. E o Helio Beltrão, no avião, virou-se para o Carlos Lacerda e comentou: "Carlos, o presidente é contra a prorrogação. A bancada da UDN diz que não tem nenhuma responsabilidade na iniciativa. Mas a emenda vai passar. É um crime sem autoria, cujo alvo é a sua candidatura. Um crime perfeito".
A votação deu-se pouco tempo depois. E por um voto -o do deputado pela UDN da Paraíba Luiz Bronzeado- o mandato do presidente Castello Branco foi, afinal, prorrogado, alcançando a emenda o "quórum" constitucional para sua aprovação.
Ficaram, assim, para 1966 as eleições para a escolha do sucessor do presidente Jânio Quadros, substituído, primeiro pelo vice-presidente João Goulart e depois pelo marechal Castello Branco, cujos ministros bateram ponto no Congresso Nacional para arrancar os votos dos parlamentares recalcitrantes. E a autoria do crime político perfeito se desvendava na sessão de votação pela desembaraçada presença no plenário do ministro Cordeiro de Faria, "doublé" de militar e político, o mais íntimo colaborador do presidente da República. E do mesmo passo inicia-se a trajetória do afastamento de Carlos Lacerda do governo militar que acabaria por arrastá-lo, em 1968, para a Frente Ampla.


RAPHAEL DE ALMEIDA MAGALHÃES, 71, ex-governador da Guanabara e ex-ministro da Previdência do governo Sarney, escreve às quartas nesta seção


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