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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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POLÍTICA EXTERNA

Luiz Felipe de Alencastro acha que a rede de contatos do presidente retarda o desgaste, mas não move agenda

Esquerda não ajuda Lula, diz historiador

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Apesar de desgastes inerentes ao exercício do poder, a esquerda européia mantém o apoio e a boa percepção em relação ao governo Luiz Inácio Lula da Silva, avalia o historiador Luiz Felipe de Alencastro, 57.
Isso porque Lula e o PT, desde antes da chegada à Presidência, participam de uma rede internacional que articula sindicatos e partidos. Essa rede, segundo o professor de história do Brasil na Universidade de Paris 4 (Sorbonne), integra a estratégia de política externa do governo e "retarda o desgaste" do presidente.
Tal articulação internacional, adverte Alencastro, não contribuirá para o avanço da agenda de política externa do país. Por mais simpático que o Partido Socialista francês seja a Lula, a Europa não abrirá seu mercado para os produtos agrícolas brasileiros, exemplifica o historiador.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida por telefone, de Paris, à Folha.

 

Folha - A esquerda européia tem mudado sua percepção sobre o governo Lula?
Luiz Felipe de Alencastro -
Há um debate na esquerda francesa para tentar captar uma esquerda abstencionista -ou que vota nesses partidos trotskistas que estão fora das alianças políticas- para o processo eleitoral e para o processo de alianças. A idéia de que o Lula tinha sido capaz de fazer uma aliança ampla e chegar ao governo com partidos de esquerda e movimentos sociais atraiu muito uma parte do Partido Socialista, que tinha acabado de ser derrotado aqui [no ano passado].
Evidentemente que esse tipo de expectativa tão geral não tinha condição de perdurar. A esquerda aqui é multifacetada e imediatamente já havia críticas [a Lula], desde a aliança com o PL.
Mas isso tem uma importância relativa. O Partido Socialista esteve aí na Internacional Socialista, foram recebidos pelo Lula e voltaram falando bem.
A França não só tem uma condição econômica incomparavelmente melhor que o Brasil, mas tem ainda uma couraça gigantesca do ponto de vista financeiro, que é estar debaixo do Euro. Não fosse a filiação ao Euro, o [presidente Jacques] Chirac nunca poderia ter proposto o veto à Guerra do Iraque. Teria ocorrido uma especulação em cima do Franco que faria ele recuar imediatamente.

Folha - Ficaria tão fragilizado financeiramente quanto o Brasil é?
Alencastro -
Claro.

Folha - Na esquerda francesa a imagem do governo Lula continua positiva?
Alencastro -
Sim. As perspectivas se reduziram, até porque o impacto da vitória ficou para trás. Houve também crises aqui e ali. Isso desgasta um pouco, mas não há desencanto. Acho também que o encanto maior durou os três dias seguintes à eleição.

Folha - Chegou-se a falar no PT e no Lula como uma esperança para a esquerda no mundo.
Alencastro -
O mal-entendido foi esse, inicialmente. Eles não têm percepção da situação brasileira. Os sistemas de aliança, o sistema político-eleitoral no Brasil e aqui [França] são completamente diferentes. Não dá para comparar.
Mas a percepção que há é que o Brasil tem uma política externa ativa. A surpresa maior foi aí. A política externa era o terreno privilegiado do Fernando Henrique, que tinha uma rede de relações internacionais. Não se tinha percebido que o Lula também tinha uma rede de contatos sindicais pelo mundo inteiro. E o PT e o Itamaraty estão utilizando isso bem.
Onde o Lula vai, ele primeiro tem um encontro com o chefe de Estado, depois se encontra com as lideranças sindicais, que ele conhece há muito tempo. Na Europa, isso conta muito. Desdobra em outro tipo de relação, tem outro tipo de rede de informação. É um trunfo que nenhum presidente americano -nem norte-americano nem sul-americano- teve. A social-democracia européia sempre jogou nesses dois registros [Estados e sindicatos].

Folha - Jogar nesses dois registros torna menos flutuante a percepção do governo Lula?
Alencastro -
Exatamente. Além disso, a percepção geral é que é necessário esperar mais um pouco, para ver se há uma retomada econômica e se o Fome Zero, por exemplo, engata mesmo.

Folha - Até quando?
Alencastro -
Se na eleição municipal do ano que vem o PT sofrer uma derrota, isso vai ser um sinal de que o governo não tinha o fôlego que se pensava. Essa eleição talvez seja a primeira que terá efeitos internos e externos. As reformas ainda não aparecem como vitória clara do governo, porque botaram muita água no vinho, mudou muita coisa...
Aliás, as eleições municipais de 2000 é que deram o sinal de que o PT poderia ganhar a eleição presidencial. Isso foi imediatamente percebido pelo embaixador americano no país à época, amigo de [Bill] Clinton, que convidou José Dirceu a Washington.
Essa eleição municipal será importante, e o Lula percebeu isso, está empenhado na campanha da Marta [Suplicy, prefeita de São Paulo] e na eleição como um todo. Foi um erro que o Fernando Henrique cometeu, de não se empenhar nas eleições municipais.

Folha - O PT participou ativamente da Internacional Socialista com o argumento de que aqueles partidos têm penetração na sociedade. Isso ajuda a política externa?
Alencastro -
O conhecimento da política externa pela opinião pública em geral é muito relativo, tanto na Europa quanto nos EUA. Os jornais cobrem, mas a opinião pública não tem idéia. O Brasil tem uma visibilidade grande, de país democrático e com instituições sólidas, o que vem desde o impeachment do [Fernando] Collor -feito dentro das regras constitucionais. Essa percepção é permanente aqui.

Folha - Mas essa rede e essas percepções ajudam concretamente?
Alencastro -
Não. Acho que não. No caso concreto da agricultura, ela é um problema, no caso da França, de civilização até.
Mesmo a agricultura sendo subvencionada do jeito que é, não passa pela cabeça de ninguém que a França não tenha mais camponeses, agricultores. A cultura camponesa é um elemento constitutivo da cultura francesa. Foram eles que fizeram as catedrais, a Notre Dame. A cultura rural está entranhada na história do país há 2.000 anos, e não é porque você tem uma concorrência internacional que eles vão largar essa política [de subsídios].

Folha - Eles não vão ter benevolência com os interesses do sul?
Alencastro -
Nenhuma.

Folha - O efeito dessa rede, que o Lula e o PT têm, é qual então?
Alencastro -
Serve para que os dossiês sejam mais bem apresentados. Você fica sabendo melhor as posições dos países. Em Cancún, por exemplo [em setembro, numa das etapas de negociação da Organização Mundial do Comércio, quando o Brasil e outros países pobres apresentaram posições antagônicas às dos EUA e Europa], houve uma primeira tentativa, iniciada pelos americanos, de mostrar a posição do Brasil como porra-louca e intransigente. Ao fio das semanas, as posições do Brasil apareceram mais bem explicadas.



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