São Paulo, quarta, 3 de fevereiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI
Demofobia, plutofilia e laborfobia

A expressão da moda é "crise de credibilidade". Trata-se de um disfarce para dois problemas reais: o colapso de uma política econômica ruinosa e a perplexidade de um governo habituado a não trabalhar.
Credibilidade é uma coisa muito delicada. Relaciona-se com a capacidade que uma pessoa tem de fazer com que os outros acreditem nela. Bill Clinton, por exemplo, é uma pessoa de pouca credibilidade. Isso apenas ofusca uma administração bem-sucedida.
Credibilidade nada tem a ver com o erro. A teoria de Ptolomeu, segundo a qual o Sol gira em torno da Terra, prevaleceu por séculos, mas não se pode dizer que, hoje, esteja passando apenas por uma crise de credibilidade. Era um erro. O que torna a aventura humana interessante é o fato de que tanto se pode dar credibilidade a um erro (o de Ptolomeu), quanto se pode negá-la ao acerto (o de Galileu). No duro trabalho de administração de sua credibilidade, preservando certas idéias e esquecendo outras, o macaco da espécie até que não se saiu mal.
Há três anos, quando FFH dizia que o mundo entrara num novo Renascimento, estava simplesmente errado. Em janeiro, ao ser empossado, dizia-se convicto de que "o Brasil sairá fortalecido da crise" (da qual não seria "gerente") e assegurava que "o país terá credibilidade ainda maior". Se cometeu um erro de julgamento, bem que poderia reconhecê-lo. Se foi outra coisa, outra coisa foi.
FHH cometeu a imprudência de apostar num Renascimento inexistente. Nessa aposta jogou o patrimônio da Viúva e vendeu o trabalho de várias gerações a preço de banana. É dele o prefácio do livro "Auto-subversão", do professor Albert Hirschman. Pois lá há de ter lido: "O curso da história parece rumar com todo vigor em direção contrária à visão que se tem do curso da história".
Seguiu uma política econômica ruinosa, rasa e rabugenta. Conviveu desnecessariamente com uma moeda sobrevalorizada, acreditando numa divindade chamada mercado. Apostou que do outro lado da mesa havia um bobo com uma dama de copas temendo que ele tivesse um ás. Achou que podia mandar no jogo com um dez de paus. Deu no que dará. Fez isso porque usou o câmbio sobrevalorizado para turbinar um dos períodos de consumo mais ridículos da história das civilizações tropicais (saladas francesas no Santa Luzia, em São Paulo, aquele que lhe doou R$ 5.000 para a campanha). Supôs que a festa cambial alavancaria a reeleição, e esta lhe daria fôlego para a correção do curso. Errou. Bem que poderia ter lido o bom amigo Hirschman com mais atenção. Ele ensinou: "Uma coisa não leva a outra. Uma coisa impede a outra". A reeleição impediu a desvalorização do real há um ano e US$ 40 bilhões atrás.
Tudo mixaria, se o problema tivesse se resumido apenas a um lance de oportunismo político. Infelizmente, ele se relaciona sobretudo com a falta de trabalho do governo. Um dos exemplos mais significativos dessa desordem foi o fato de o Ministério da Fazenda não ter preparado o projeto de emenda constitucional que teria impedido a caducidade da CPMF. Até as pedras sabiam que a partir de 24 de janeiro a Viúva ficaria sem esse tributo. A turma que tanto fala em ajuste fiscal não moveu uma palha e a CPMF caducou, abrindo um buraco estimado pela própria ekipekonômica em R$ 6,7 bilhões. Compensaram-no aumentando outros impostos. Deixaram de arrecadar o único tributo que vai ao bolso dos sonegadores e garfaram o dinheiro de quem tem livros limpos. Para se ter uma idéia do que fizeram, dos 100 maiores contribuintes da CPMF de uma lista do Banco do Brasil mandada à Receita Federal, 48 nunca declararam Imposto de Renda. Esse pessoal, penhorado, agradece. Apesar de tudo isso, poderia ser injusto acusar a ekipekonômica de não fazer o dever de casa. Eles podem saber coisas que a choldra desconhece e, portanto, alguma razão deve ter havido. Agora se sabe que, de fato, houve um motivo. O Ministério da Fazenda, oficialmente, revela que seus sábios confiaram em pareceres jurídicos que asseguravam a legalidade da cobrança do imposto, com a alíquota anterior, até que a nova emenda constitucional, depois de aprovada pelo Congresso, entrasse em vigor. Bastaria meia dúzia de telefonemas para se descobrir que isso era uma tolice. De qualquer forma, bem que o Ministério da Fazenda poderia fazer a gentileza de informar à escumalha o seguinte:
Quem foram os sábios que deram esses palpites? Onde estão os pareceres? O que dizem?
Quem foram os gênios que acreditaram nesses pareceres?
Um governo e um Ministério da Fazenda que acreditam em tamanha bobagem não podem sofrer crise de credibilidade.
Seu males são outros. A saber:
1) demofobia, ou horror ao povo. Exemplo: desde o final do ano passado o governo insistiu em se manter distante, por gestos e palavras, da crise das 2.800 demissões da Ford. Agora, oferece à montadora uma redução de IPI em troca do reestudo das demissões. Faz em fevereiro o que podia ter feito em dezembro;
2) plutofilia, ou amor aos ricos. Sobe os juros que engordam gatos gordos, sabendo que com isso aprofundará o desemprego e a recessão de 1999, depois dos pífios resultados econômicos de 1998, provocados precisamente pelas taxas de juros lunares;
3) laborfobia, ou alergia ao trabalho. Nesse aspecto, não se trata daquele desânimo que sempre aparece na hora de se pegar pesado. A alergia se manifesta até nas horas em que bastaria pegar leve. Noves fora o caso da CPMF, por falta de quem datilografasse uma portaria, deixou-se o dólar fiscal por 12 dias a R$ 1,20, quando ele já estava encostando nos R$ 2. Por falta de outro papelucho, paralisaram-se as vendas de máquinas agrícolas por quase um mês. Por falta de quem resolvesse trabalhar algo como duas horas, extinguiu-se o Dnocs sem esclarecer para onde iriam seus funcionários, seus móveis e algumas de suas políticas regulatórias. Depois, ressuscitaram-no e criaram uma comissão para decidir como se fará o que devia ter sido feito.
Numa situação dessas, fica-se com saudade dos faraós. Faziam obras faraônicas, mas até hoje não houve um só bípede que, diante de uma pirâmide, tenha sido capaz de negar o quanto se trabalhou para empilhar aquelas pedras. Os faraós se atribuíam uma credibilidade divina. Hoje em dia ninguém acredita neles, mas as pedras estão lá.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.