São Paulo, quarta-feira, 03 de abril de 2002

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ELIO GASPARI

O Itamaraty tem vergonha do seu êxito em Angola

Deu no "The New York Times": documentos americanos revelam que o presidente Richard Nixon e o secretário de Estado Henry Kissinger fizeram a patuléia de boba em 1975, quando denunciaram a intervenção cubana em Angola nos meses anteriores à sua independência. Eles já estavam intervindo na guerra civil que se iniciara naquele país. E estavam intervindo sem qualquer relação com a atitude de Cuba. Mais ou menos como tinham feito no Congo anos antes.
Passados 27 anos desses episódios, cabe uma pergunta: e o que é que a gente tem a ver com isso?
O seguinte: há 27 anos a diplomacia brasileira escreveu em Angola uma das páginas mais corajosas, criativas e competentes de sua história. Tomou um curso oposto à americana. Mostrou que estava certa e, aos poucos, os próprios testemunhos dos americanos demonstram isso. Os americanos estudam e aprendem como perderam, enquanto os brasileiros ignoram o próprio sucesso.
Depois do desabamento da ditadura portuguesa, em 1974, Angola tinha data marcada (11 de novembro de 1975) para se tornar independente. Estava dividida em três facções. O MPLA tinha o apoio russo, a FNLA era sustentada pela CIA e a Unita, pela África do Sul. Dois diplomatas brasileiros, Ítalo Zappa, chefe do Departamento de África do Itamaraty, e Ovídio de Andrade Mello, cônsul-geral em Luanda, sustentavam que esses apoios eram construções geopolíticas pernósticas e que o MPLA haveria de prevalecer.
Eram dois tipos estranhos. Ovídio aceitara trocar o lugar de ministro-conselheiro em Londres pelo consulado em Luanda, onde faltava comida. (O mais famoso caso de remoção com tamanha queda de qualidade de vida deu-se com um embaixador de má conduta.) Zappa viria a ser um embaixador que nunca serviu numa capital onde os supermercados vendiam creme de barbear (Pequim, Maputo, Havana e Ho Chi Minh).
Tiveram o apoio de uma chanceler tenaz, o embaixador Antonio Francisco Azeredo da Silveira, e de um presidente capaz de se lixar para os americanos: Ernesto Geisel.
Em outubro de 1975, o professor Kissinger achava que a fatura angolana estava resolvida. Com a sua ajuda, a FNLA invadiria o país pelo norte, enquanto a Unita, apoiada por tropas sul-africanas, invadiria pelo sul. A ofensiva da Unita começou em outubro e parecia um êxito. No dia 11 de novembro, o MPLA seria expulso de Luanda e o caso estaria encerrado. Na hora de a onça beber água, Fidel Castro meteu-se na briga, mandou tropas para Angola, pulverizou a ofensiva da FNLA e rechaçou as tropas sul-africanas.
Ficou a impressão de que o Brasil se metera numa guerrilha cubana. De Luanda, Ovídio sustentava que a presença maciça de cubanos em Angola antes do dia 11 de novembro era uma lorota. Tanto ele quanto Zappa arriscavam dizer que a intervenção cubana dera-se à revelia dos russos.
Foram dados por doidos. Ovídio foi removido para a Tailândia e de lá para a Jamaica. Penou mais de 40 preterições.
Passou o tempo e, no final de 1999, o professor Henry Kissinger publicou o último volume de suas memórias reconhecendo que fez bobagem em Angola.
Apesar do mea culpa, o professor insistiu em denunciar a ação cubana, ficando mais ou menos como anjo em relação àquilo que aconteceu antes da chegada das tropas de Fidel. Agora o professor Piero Gleijeses, da Universidade John Hopkins, acaba de publicar nos Estados Unidos o livro "Missões Conflitantes Havana, Washington e África, 1959-1976", no qual, baseado em documentação recentemente liberada, prova que os americanos começaram a intervir em Angola em junho de 1975, quando lá não havia um só cubano. A versão de Kissinger foi desmontada, e quem diz isso é um ex-diretor de inteligência do Departamento de Estado.
O êxito diplomático brasileiro em Angola é até hoje mantido sob uma capa de constrangimento. Vão-se completar 30 anos e não se tem notícia de um só grupo de trabalho montado no Itamaraty para estudar o caso. Muito menos de um reconhecimento público da competência da diplomacia brasileira.
Em tempo: em 1964, o embaixador americano Lincoln Gordon recebeu uma das mais prestigiosas medalhas do Departamento de Estado. Qualquer coincidência com a derrubada de João Goulart é mera semelhança.


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