São Paulo, domingo, 03 de junho de 2001

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JANIO DE FREITAS

O senhor Caetano e nós

Não fora outro baiano, o sempre polêmico Caetano teria assegurado um tema para rivalizar com a ocupação da mídia pela indecente falta de energia. As reações à sua mais recente sentença chegaram a prometer, indignadas umas, concordantes outras, provenientes algumas de pessoas respeitáveis e várias pelo contrário. O tema, de qualquer modo, sobreviveu ao cerco porque sobreviverá à falta e à volta da energia: Caetano, o não só baiano, colheu-o por aí afora, na vastidão brasileira dos sentimentos contraditórios, e o sintetizou: "[Também" a própria idéia do Brasil como nação me cansa, estou de saco cheio" (entrevista a Antonio Carlos Miguel, em "O Globo").
Cansaço é acúmulo. Há que ir ao início, pois, àqueles ditos tempos dourados em que o agora cinquentão sr. Caetano Veloso chegava para conhecer o Brasil, sem saber que vinha para se fazer conhecido do mundo. De que se ocupavam os jornais, como prioridade pelo interesse coletivo, na passagem de maio para junho há exatos 50 anos? Eis o vigor das manchetes: "Racionamento de energia não terminará em junho"; "Light pedirá prorrogação até o fim do ano"; "Melhora o nível das águas de Ribeirão das Lajes"; "As obras de ampliação (da represa) afinal são aceleradas"; "O racionamento de energia deverá continuar".
Somos um paradoxo: hoje em dia estamos há 50 anos. Na melhor das hipóteses.
O Brasil, de lá para cá, melhorou? O bem-estar na vida urbana das famílias que já o tinham, àquela altura, é hoje maior nas capitais e grandes cidades brasileiras? Maior parcela da população passou a desfrutar de bem-estar, assistência pública, maior oportunidade e direito de ascensão econômica e social?
Se a resposta negativa se explicasse por falta de aspirações e de empenho da população, toda expressão de desencanto e cansaço não seria mais do que parte, ela mesma, do estado geral. Mas, se a população sobrevive de trabalho e apesar das adversidades criadas pelo Estado sob controle e proveito de uma parcela infinitesimal de pessoas, olhar em volta, para cima ou para baixo só pode provocar desencanto, cansaço e desesperança.
Meio século - e a atual crise de energia é muito, muito mais grave na dimensão e nos efeitos previstos do que há 50 anos. "FH põe a culpa da crise energética nas chuvas", uma das manchetes do último 19 de maio, seguimento apropriado desta outra: "FHC diz que foi surpreendido pela crise de energia". Então Fernando Henrique não sabe que em 99 criou o Plano Emergencial de Energia, como resultado de constatações quase intermináveis de que se avizinhara muito a crise esperada desde muito? Sabe. Como sabe que seu governo cortou pela metade os recursos que se destinavam a ampliar a geração e a distribuição de energia, e que por isso mesmo o Plano Emergencial não teve vez.
A crise de energia não é só uma crise de energia: é a demonstração definitiva de que o Brasil se torna caso perdido pela leviandade com que é conduzido ao correr do tempo. As características, sem precedentes, da atual crise de energia correspondem à leviandade sem precedentes que a permitiu.
Tudo muito bem aceito. Senão vejamos o que o prolífico teórico filosófico do fernandismo, José Arthur Giannotti, tão enfático que ocupou toda a página política do insuspeito "O Globo" de 13 de maio: "Não importa se é moral ou não liberar emendas ao Orçamento para convencer congressistas. Moral e política não andam juntas". (...) "O presidente Fernando Henrique não tinha outra opção para enterrar a CPI da corrupção", devendo nós todos aprendermos que "o universo político permite e tolera uma certa imoralidade". À primeiro vista, não é só o universo político, não.
Mas, deixemos esses universos, ou teremos que entrar, antes da hora, na penetração da imoralidade e da "amoralidade" no jornalismo, pelas mãos de jornalistas que vão se endinheirando, e se tornando subfilósofos da "modernidade", com a exploração comercial do que deveria ser apenas o segmento temático do setor jornalístico em que transitam. Importantes, neste momento, são coisas como a repetição do desespero faminto que atinge de bebês aos mais idosos na área da seca, onde a fome criou, na excelente expressão da repórter Catia Seabra, "a guerra entre miseráveis e famintos", estes saqueando aqueles.
Fernando Henrique agiu depressa e criou o "ministério da seca", entregue a um ministro cuja providência mais importante, até agora, foi adiar as primeiras providências importantes por mais 15 dias. Problemas de verbas, talvez. E, nesse caso, de coerência em excesso. Transcrevo outro repórter, André Soliani: "O governo federal deixou de investir [no ano passado" mais da metade do dinheiro destinado no Orçamento da União a três programas básicos de combate à seca".
Se o racionamento, se a fome na seca, se o dinheiro público para intervir e "enterrar" ações no Congresso, se isso e o demais que se sabe não forem crimes contra o país e contra a população, então não existiria crime de espécie alguma contra uma população e um país. Mas nem por isso torna mais tolerável viver como testemunha disso tudo.


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