São Paulo, segunda-feira, 03 de julho de 2006

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ENTREVISTA DA 2ª/ MATTHEW BISHOP

Por culpa, bilionários fazem doações polpudas

Número de bilionários subiu de 423, em 1996, para 691 atualmente no mundo, segundo informa a Economist Intelligence Unit

Para Matthew Bishop, editor de economia da revista britânica "The Economist" em Nova York, especializado no estudo do binômio riqueza e filantropia, o número de bilionários está crescendo muito rapidamente no mundo e, com isso as doações, resultado de sentimento de culpa. Na semana passada, Warren Buffett, segundo homem mais rico do mundo, disse que pretende doar 85% de sua fortuna, estimada em mais de US$ 40 bilhões, para a fundação comandada por Bill Gates. Bishop diz que, muitas vezes, os bilionários têm dúvidas se as fortunas que deixarão para seus herdeiros lhes farão bem e se os familiares serão capazes de fazer doações. Por isso, optam por entregar o dinheiro a terceiros. Os americanos gostam de fazer doações a museus, galerias de arte e universidades.

CÍNTIA CARDOSO
DA REPORTAGEM LOCAL

O mundo nunca teve um número tão grande de multimilionários. Nem de filantropos. De acordo com a EIU (Economist Intelligence Unit), há 691 bilionários no mundo. Desse total, 388 acumularam a sua própria fortuna. Toda essa riqueza, entretanto, tem gerado um certo sentimento de culpa. O resultado, avalia Matthew Bishop, editor de economia da revista britânica "The Economist" em Nova York, é o crescimento dos anúncios de polpudas doações para causas filantrópicas. Na semana passada, o norte-americano Warren Buffett, segundo homem mais rico do mundo, declarou que pretende doar 85% da sua fortuna, estimada em mais de US$ 40 bilhões, para a fundação comandada por Bill Gates. O próprio Gates e a sua mulher Melinda desembolsaram US$ 30 bilhões para a fundação. "Nos EUA, há essa cultura capitalista do "ganhador leva tudo". Mas, ao mesmo tempo, há um contrato social tácito em que os vencedores da sociedade têm de ajudar os perdedores." O jornalista, especializado no estudo do binômio riqueza e filantropia, foi conselheiro da ONU (Organização das Nações Unidas) no Ano Internacional do Microcrédito em 2005. A seguir, a entrevista concedida à Folha por telefone.  
FOLHA - Por que estamos vendo o crescimento dessa tendência de megadoações para causas filantrópicas?
MATTHEW BISHOP
O principal motivo é que o número de bilionários está crescendo muito rapidamente. Logo, há uma possibilidade maior de se fazer esse tipo de ação. Outra razão é que essas pessoas ricas estão mais conscientes dos problemas no mundo. Elas sabem que esses problemas precisam ser resolvidos e que métodos tradicionais, como governos, não têm capacidade de lidar com essas questões. Esses bilionários que ganharam a vida fazendo carreira sentem a necessidade de usar os seus talentos nos negócios para tentar resolver os grandes problemas sociais do globo. Acredito também que eles estejam preocupados com o fato que, se não usarem o dinheiro para fazer o bem enquanto estão vivos, terão que deixar o dinheiro para os filhos. Deixar uma grande herança, muitas vezes, pode causar um mal maior para esses herdeiros do que um bem, porque eles podem ficar muito mimados e perderem a noção do valor do dinheiro, da importância de trabalhar... Outro temor desses bilionários é deixar a herança para ser administrada por terceiros que, não se sabe, se serão capazes de fazer ações realmente filantrópicas.

FOLHA - Sempre houve bilionários. Qual a diferença entre essa elite de hoje e a do passado?
BISHOP
A maior diferença é que, nessa última década, a velocidade de expansão dessas novas fortunas foi muito maior. Em 1996, havia 423 bilionários no mundo. Hoje são 691. Desses, 388 construíram as suas próprias fortunas. A globalização e o avanço de epidemias como a Aids também deram um alerta para esses novos ricos. As doenças que atingem muito mais as populações dos países em desenvolvimento tornaram ainda mais clara a fronteira entre ricos e pobres no mundo. Aqueles que fizeram muito dinheiro nos países ricos nos últimos anos não conseguem mais enterrar a cabeça num buraco e ignorar o problema em torno deles. Isso era mais fácil de fazer antigamente.

FOLHA - Essa tendência de doar quantidades vultosas de dinheiro para a filantropia também vai chegar a países como o Brasil?
BISHOP
- No Brasil, há muitas pessoas que se deram muito bem nos últimos anos na esteira do crescimento econômico. Essas pessoas não vão conseguir desviar os olhos dos problemas ao redor delas. Os ricos do Brasil estão mais assustados com a situação de desigualdade social que seus pares nos outros países. Não é por acaso que cresce tanto o número de carros blindados e de helicópteros para escapar da violência. É muito difícil para os milionários brasileiros morar tão perto da pobreza e não tentar fazer alguma coisa a respeito, especialmente quando se vê os exemplos de Bill Gates e de Warren Buffet.

FOLHA - Há algum aspecto cultural que explique a propensão de certos países a se engajarem mais em atividades filantrópicas que outros?
BISHOP
- No passado, as diferenças culturais eram mais importantes. Por exemplo, nos países católicos havia a forte crença que, ao se doar para a igreja, ela se encarregaria da caridade. Hoje o mundo está mais sintonizado. Seja na China, na Índia, no Brasil há a pressão da sociedade para que os ricos sejam generosos. Nos EUA, há essa cultura capitalista do "ganhador leva tudo". Mas, ao mesmo tempo, há um contrato social tácito em que os vencedores da sociedade têm que ajudar os perdedores. Acho que esse modelo está sendo exportado para outros países. Por isso, em nível global, vai haver um crescimento da pressão para que aqueles que são bem-sucedidos partilhem os seus lucros com os mais necessitados.

FOLHA - Quais os principais setores a receber a atenção e o dinheiro dos novos filantropos?
BISHOP
- Há muitas tendências. Os americanos, tradicionalmente, dão dinheiro a comunidades locais como museus, galerias de arte, salas de espetáculo e universidades. Há ainda muito disso em voga, mas o mais estimulante é o novo foco no mundo em desenvolvimento em três áreas específicas. Uma delas é a atenção aos problemas de saúde pública, com incentivos para que companhias farmacêuticas desenvolvam medicamentos para males como malária, tuberculose e doenças tropicais. Outra área interessante é a educação, com destaque para o estímulo à educação de nível superior nos países mais pobres. A área que mais me fascina é o setor de microfinanças, que é a nova estrela da filantropia. Ou seja, a criação de canais de acesso a crédito para os pobres para que eles possam fazer empréstimos para negócios próprios e se tornem independentes de ajuda humanitária internacional.

FOLHA - Há como medir os benefícios econômicos da filantropia?
BISHOP
- Essa é uma das maiores dificuldades. Como diz Warren Buffett, no mundo dos negócios, é possível medir o sucesso pelo lucros. Mas, quando se doa dinheiro para a caridade, é muito difícil saber se os recursos foram bem usados ou não. Só é possível medir o quanto foi aplicado. Não dá para saber o quão bem esse dinheiro foi gasto. Uma das preocupações de Bill Gates é medir o impacto positivo do dinheiro doado. Espero que vários filantropos também comecem a prestar atenção para evitar desperdícios. Há muitas histórias de fundações que desperdiçaram milhões por se canibalizarem atuando nos mesmos nichos ou por quererem inventar a roda.

FOLHA - Quais os maiores erros cometidos por essas instituições? Em casos de empreendimentos bilionários, como o da fundação de Bill Gates, seria adequado adotar estratégias de gestão das grandes corporações?
BISHOP
- Um dos pontos fortes das instituições filantrópicas é que elas não precisam prestar contas a ninguém. Não têm de mostrar balanços financeiros e têm liberdade para fazerem o que quiserem. O lado ruim é que não há pressão para a utilização eficiente dos recursos. Isso é maléfico quando o patrono morre e burocratas profissionais assumem o comando da instituição. Eles começam a fazer grandes escritórios, sedes majestosas e não se voltam para as atividades que gerem benefícios de longo prazo.

FOLHA - Qual a diferença formal entre filantropia e caridade?
BISHOP
- Na minha avaliação, caridade é uma ação que lida com os sintomas dos problemas sociais. Exemplo: dar sopa e pão para quem passa fome. Já a filantropia é uma ação estratégica de longo prazo e com o foco em lidar com a causa. Em vez de dar comida para os famintos, se tenta entender o porquê de as pessoas passarem fome. É por isso que eu acredito que o desenvolvimento das microfinanças é tão importante.

FOLHA - Os governos deveriam criar mais incentivos, como benefícios fiscais, para estimular atividades filantrópicas?
BISHOP
- Nos EUA, há grande incentivo para a filantropia. No Reino Unido, houve um aumento de incentivos fiscais para esse tipo de atividade e, de fato, houve um aumento das doações. Mas acho que esses incentivos têm que ser bem genéricos. Não gostaria de ver governos interferindo na gestão dessas entidades. A grande riqueza da filantropia é não ser dirigida pelo Estado, o que evita pressões imediatistas de políticos.

FOLHA - Uma grande intervenção das ações de entidades filantrópicas pode comprometer a ação do Estado em setores que deveriam ser de responsabilidade governamental?
BISHOP
- Há um debate recorrente se a filantropia privada é melhor que o Estado. Mas não acredito que esse tema seja relevante. Em todos os lugares do mundo, os governos estão sentindo que não têm os recursos financeiros para fazer tudo o que tem que ser feito. Assim, se conseguirem encontrar quem possa fazer esse trabalho, eles ficarão muito agradecidos.

FOLHA - Ano passado foi escolhido pela ONU como o ano do microcrédito. Isso provocou algum estímulo para doações nesse segmento?
BISHOP
- Não sei se foi uma contribuição direta, mas acredito que tem surgido uma forte consciência entre as grandes instituições financeiras e entre os candidatos a filantropos que a microfinança é um modelo que dá certo. Isso vai fazer com que eles tendam a se empenhar a doar para essa causa em uma escala muito maior.


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