São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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NO PLANALTO

Dívida da Previdência é gerida com imprevidência

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

D eus existe. Mas não dá expediente integral. Antes, descansava só no sétimo dia. Agora, pelo mundo que temos, anda flanando muito mais. Que o diga Amir Lando. O ministro da Previdência confiou demasiado na providência. Deu chance para o azar em 13 de maio de 2004. Um desses dias em que o Senhor repousava.
Alçado à Esplanada na cota do PMDB, Lando trocou certos dentes da engrenagem previdenciária. No fatídico 13 de maio, pôs Jorge Henrique Pereira de Menezes na chefia da estratégica Divisão de Dívida Ativa.
Três meses antes, o mesmo Pereira de Menezes fora afastado de um posto análogo sob suspeita de favorecer empresas de Brasília. Dois meses depois de nomeado por Lando, suspendeu indevidamente a cobrança da dívida de uma firma do Pará.
Aconteceu assim:
1) escolhido pelo ministro havia dois meses e 13 dias, o doutor Pereira de Menezes recebeu, em 26 de julho, petição da empresa Citrama Transportes Ltda. Tem sede no município paraense de Ananindeua. Mantém no cadastro de devedores da Previdência um espeto de R$ 840 mil. Dívida antiga, em fase de cobrança judicial;
2) a empresa pediu ao nomeado de Lando a revisão do débito. Insurgiu-se contra juros e multas. Dispôs-se, de resto, a "liquidar" a dívida. Não com dinheiro, mas com um lote de papéis podres da Eletrobrás;
3) o papelório foi emitido como garantia de um empréstimo compulsório criado na década de 60 para financiar a expansão de redes elétricas. Tinha prazo de resgate de 20 anos. A Eletrobrás informa que o último lote expirou em 1992;
4) em despacho de três laudas, Pereira de Menezes declarou a "incompetência" de sua repartição para julgar o mérito do pedido da Citrama. Assim mesmo, expediu uma curiosa certidão em favor da empresa;
5) o documento atesta a "suspensão da exigibilidade" da dívida da Citrama. Em português claro, significa que a cobrança do passivo de R$ 840 mil foi sobrestada;
6) munida da certidão, a Citrama tentou vender imóveis que, atrelados à dívida, estavam indisponíveis. Sentindo cheiro de queimado, o serventuário de um cartório paraense contatou o escritório do INSS em Belém;
7) o assunto veio bater em Brasília. Superior hierárquico de Pereira de Menezes, o coordenador de Matéria Tributária do INSS, Célio Rodrigues da Cruz, o desautorizou. Ele "não detém competência para emitir certidão negativa", anotou, num ofício de circulação interna;
8) acionado, o procurador-chefe do INSS, Jefferson Carus Guedes, endereçou, 15 dias atrás, um ofício a Amir Lando: "Em face destas graves informações, solicitamos [...] a imediata exoneração do procurador Henrique Pereira de Menezes";
9) o ministro não mostrou o bilhete azul. Pereira de Menezes encontra-se em licença médica. Padece de "estresse". Só volta à ativa em 11 de outubro. Aguarda-o um processo administrativo-disciplinar;
10) na semana passada, Pereira de Menezes foi chamado a defender-se. Não se deu por achado. Invocando a condição de licenciado, recusou-se a assinar a notificação;
11) o repórter descobriu que o funcionário é protagonista de outro processo disciplinar. Chegou à Advocacia da União em julho. Refere-se a fatos anteriores à nomeação assinada por Amir Lando;
12) Pereira de Menezes chefiava então a Divisão de Dívida Ativa do INSS no Distrito Federal. Autorizou a emissão de certidões negativas supostamente irregulares em favor de três firmas: Veg Segurança, Etec Engenharia e Sublime Serviços Gerais;
13) exonerado, Pereira de Menezes defendeu-se por escrito. Alegou não ter ordenado a emissão de certidões. Apenas externou um "entendimento pessoal". Ele mirou para baixo: "Qualquer chefia toma decisões baseadas em informações que lhe são fornecidas por seus auxiliares, podendo, hipoteticamente, ser induzida a erro";
14) no caso Citrama, graças à perspicácia de um serventuário de cartório, evitou-se um desastre. Frustrado o plano de resgatar a dívida de R$ 840 mil com papéis micados da Eletrobrás, a firma do Pará parcelou, em 21 de setembro, o seu débito com o INSS;
15) resta definir o destino de Pereira de Menezes, o nomeado de Lando. O repórter ouviu-o na quinta-feira. Disse que é "bode expiatório". Julga-se "perseguido". Por quem? Não dá nomes;
16) Pereira de Menezes diz que "enxertaram" um parágrafo na certidão que emitiu em favor da Citrama. "É só confrontar com o documento original". Onde está o original? "No corpo do processo." Onde se encontra o processo? "Foi enviado para Belém." Seguiu há dois meses. Jamais chegou. É dado como extraviado.
17) perguntou-se a Pereira Menezes por que, afinal, determinou a suspensão da "exigibilidade" da dívida da Citrama. "Dei um mero despacho. Pode ser acatado ou não." Mas não é chefe de seção? "A questão é técnica." Se lhe fosse dado voltar no tempo, faria algo diferente? "Sim. Não confiaria em ninguém. Nem chefe, nem subordinado, nem advogado. Ninguém";
18) por ora, não se pode chamar Pereira de Menezes de culpado. Os dois processos disciplinares que varrem a conduta dele estão inconclusos. Porém, com tantas dúvidas a assediá-lo, parece claro que o controle da dívida previdenciária não lhe cai bem;
19) como Deus parece ter coisa melhor a fazer do que iluminar os passos de Amir Lando, o ministro talvez tenha que corrigir sozinho o produto de sua imprevidência. Ao contribuinte não resta senão rezar.

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